Sandra Godinho

Paulista radicada no Amazonas, é graduada e mestre em Letras. É membro da Academia Internacional de Literatura Brasileira (AILB), e tem dez livros publicados.

Conto Sandra Godinho: Animais

Conto reflete sobre os impactos da exploração humana na floresta, nos animais e na vida de uma família ribeirinha

Casa do Conto "Animais", de Sandra Godinho. Arte: Fabrício Vinhas / Amazônia Latitude
Casa do Conto "Animais", de Sandra Godinho. Arte: Fabrício Vinhas / Amazônia Latitude
Casa do Conto "Animais", de Sandra Godinho. Arte: Fabrício Vinhas / Amazônia Latitude

Casa do Conto “Animais”, de Sandra Godinho. Arte: Fabrício Vinhas / Amazônia Latitude

As vozes vinham de dentro das paredes e trabalhavam em uníssono; era preciso, para combater a fome e a sensação de vazio. As entranhas davam o tom e a cadência, tangendo as necessidades que, naquela casa, eram muitas.

Bílis, vísceras, nervos e podridão, tudo desgastado pelo uso. As tábuas de madeira rangiam, no risco de se romperem. As dobradiças das janelas, enferrujadas, não obedeciam ao manuseio, não abriam nem fechavam.

Também já não havia mãos. As que habitavam a casa há muito tinham-se ido, antes que ela se precipitasse sobre os corpos, soterrando músculos e pelancas. Só restaram os ruídos e o estrago nas fendas.

As fendas eram muitas. Profundas. Algumas se preenchiam com raízes de árvores próximas, que avançavam sobre o local que mais parecia um túmulo.

Por acaso, não sabiam que para cada função havia uma madeira específica? Paxiúba para revestir assoalhos, caibros de andiroba para afastar os carapanãs, acariquara para os parapeitos e as varandas, louro vermelho para as paredes laterais, palha de buçu para a cobertura. Tivessem escolhido a madeira adequada, não estaríamos lá, nos banqueteando com os restos. 

Aquela família ribeirinha resistia por obra de Deus ou do Diabo, só para entender o resto da sua existência. Nunca aprenderam que as árvores nos davam o mundo inteiro, a nós e a eles.

As castanheiras forneciam os ouriços; os açaizeiros, o fruto, tão energético que punha a todos de pé e em estado de espera, aguardando a farinha e o peixe. O fruto roxo saía da floresta e chegava ao porto ainda de madrugada, em paneiros ou rasas de açaí, para ser comercializado em todo canto.

Todos lá trabalhavam. O pai pescava o tambaqui, o menino colhia o açaí das árvores, a menina criava as galinhas e a mãe passava horas produzindo farinha de macaxeira. Esse era o mundo inteiro, o mundo que conheciam, o que fazia explodir histórias em fúria lenta, sempre à noite e sob a luz dos candeeiros, conversando com os vizinhos e os compadres.

Viviam bem até darem ouvidos a quem sempre foi surdo à natureza. Cederam tanto a esses rabos de conversa que, em pouco tempo, a vida degringolou, feito barranco de rio na época da vazante, quando os espaços de ar desmanchavam a terra. 

É só descuidar do fogo da coivara e deixar o terreno arder um pouco mais pra botar pasto, dizia um. Umas cabeças de gado, só para começar, dizia outro. Se não der, o compadre passa a terra pra frente, que o que não falta na região é grileiro e garimpeiro, retrucava o outro, forasteiro.

A região se encheu deles, insistiam que tinha muita empresa querendo tomar posse e facilitar a mineração. Foram tantas as ideias alimentadas pelas palavras dos outros que o pai viu seu futuro cintilar antecipado na planície. Um futuro enfeitiçado, onde a tudo botavam preço: água, terra e céu. Um lago azul no meio do verde valia milhões.

Foi assim que o pai se esqueceu do rio, da mata, dos animais, dele mesmo e dos gestos de generosidade que ainda vicejavam na família e naquele mundo de compadrio.

As palavras martelaram, costurando muitos dias e noites na imaginação, em poderosa urdidura. Até que a família as colocou em prática. Atearam fogo e energia, se empenharam a desbastar o que viam pela frente. Não notaram as chuvas se espaçando, a terra ressecando, os rios murchando.

Dentro em pouco, atravessaram até a outra margem do seu mundo. O açaí começou a queimar no pé, sem força para florescer. Os igarapés perderam a correnteza. Nem golfinho conseguia atravessar as barreiras do imponderável, morrendo na superfície dos rios e dos lagos; a mandioca desistiu de crescer, mergulhada no próprio enterro, debaixo da terra. Sem o milho, as galinhas morriam de fome, desgraçadas pelo destino.

Foram as primeiras a se rebelar depois que a generosidade deixou de existir. Os animais, como homens, se defendiam da fome procurando outros caminhos. Cruzaram o sítio como se a família fosse a inimiga, bicando e debicando as mãos que encontraram pela frente antes de sumir pelos arbustos.

Mãos que tentaram segurar a carne branca que ainda viam como sustento. De nervos expostos, sangrando, sem conciliar com o sono, a família partiu, calando as corujas, os guaribas e os jacus, que deixaram de visitar o sítio.

Para nós, restaram as madeiras. Já não fazemos distinção de nenhuma delas, também nós mudamos com o novo clima; seguiremos abocanhando até a última farpa.

No ano que vem, a gente não sabe como vai ser. Talvez tenhamos de aprender a nos alimentar de podridão, assim como os urubus.

Sandra Godinho é graduada e mestre em Letras. É membro da Academia Internacional de Literatura Brasileira (AILB). Com Orelha lavada, infância roubada (2018), recebeu Menção Honrosa no 60º Prêmio Literário Casa de Las Américas (2019), e com Verso do reverso (2019) ganhou o Prêmio Regional de Melhor Livro de Contos da Cidade de Manaus. Seu romance Tocaia do Norte (2020) venceu o Prêmio Cidade de Manaus 2020 e foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura em 2021. Outra obra sua, A morte é a promessa de algum fim, recebeu o Prêmio Cidade de Manaus 2021, e também o Prêmio Focus Brasil NY/AILB 2022. Tem ainda dois romances finalistas do Prêmio Leya de 2021 e 2022, Memórias de uma mulher morta e A Secura dos ossos.

Montagem de página e acabamento: Alice Palmeira
Arte e Montagem do site: Fabrício Vinhas
Revisão:
 Glauce Monteiro
Direção: Marcos Colón

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