Geopoéticas, literatura, resistência-metáfora pela natureza: apontamentos sobre a agroliteratura de Dalcídio Jurandir
Paulo Nunes analisa como a literatura de Dalcídio Jurandir transforma a natureza da Amazônia em linguagem, memória e imaginação


Dalcídio Jurandir, autor marajoara. Foto: Paulo Nunes / Arquivo Pessoal.
Chamo-me Paulo Nunes. Na certidão de nascimento: Paulo Jorge Martins Nunes. Paulo: ‘pequeno’, Jorge: ‘agricultor’; ou seja, ‘pequeno agricultor’, que pede passagem para adentrar um mundo de saberes que contempla a literatura e suas relações com a natureza. Sim, acredito que a literatura tem o que dizer em tempos de COP30 (embora a questões literárias não se restrinjam ao badalado evento), a conferência da ONU sobre o clima, a realizar-se em novembro próximo em Belém, capital do Estado do Pará, Amazônia oriental do Brasil.
A literatura, antes de a ecologia existir como tal, já fazia valer uma proposta de resistir em defesa da natureza, graças à força expressiva de escritores e escritoras amazônicos. Poderíamos iniciar esta conversa com Inglês de Sousa ou Milton Hatoum, por exemplo, mas prefiro fazê-lo inicialmente citando um poema de Eneida Villas Boas de Moraes, jornalista, cronista feminista, ligada ao Partido Comunista. De Eneida temos um poema de 1929, intitulado “Banho de Cheiro”, que é típica representação de uma ecopoética amazônica, que poderíamos filiar à corrente de um paraensismo românico tardio. Senão, vejamos:
HUM! A senhora está rindo?
Está caçoando da mulata velha?
Então por que veio me procurar? Não acredita,
porque é moça e é bonita,
mas quando for ficando velha, vai acreditando
Depois você precisa disso tudo! Menina,
A inveja pode até matar a gente…
Quantos casos – quantos! – eu vi de moças bonitas,
Que um dia começaram a dar pra trás,
E ficaram – coitadas – umas infelizes pelo mundo afora!
Os santos sozinhos não fazem milagres…
Deus disse: “Faz que eu te ajudarei”
Ouça um conselho, menina: – Faça!
Olhe:
Compre priprioca e tome sempre no seu banho
de patchouli e pau de Angola…
quando alguém se afastar de si,
tome um banho com essa batata de “vai e volta”…
Se a pessoa não voltar, cuspa-me na cara…
Quando quiser prender para toda a vida alguém,
ponha carrapato nos seus banhos de cheiro… É uma beleza!
E cachorrinho pra “amansar?”
– Escuta, minha velha, o banho de Felicidade, como é? Como se faz?
– “O banho da Felicidade?”
– Tome às sextas-feiras ao meio dia, catinga de mulata, manjerona,
bergamota, pataqueira, priprioca, patchouli, cipó catinga, arruda,
cipó uyira, baunilha e corrente…Ponha isso para ferver,
e depois de estar frio, tome o banho…
“Ah! menina!
a Felicidade vem que vem bonita…
Há muitos banhos bons:
o banho pra arranjar namorado,
pra ter sempre dinheiro,
pra inveja não pegar,
pra os maus olhados não fazem mal à nossa vida”
– “E quanto custa um banho desses? Você preparando?>>
– “Por 5$000 eu lhe dou um banho e tanto…”
“Ninguém será mais feliz e mais querida que você…
Tome, minha menina…
Tome sempre seu banho de Felicidade…”
Banhos de cheiro da minha terra…
A Felicidade que custa 5$000…
As folhas verdes que nos podem dar
aquilo que o destino nos negou…
A Felicidade…
A Felicidade que a mulata Sabá vende no mercado…
Banhos de cheiro do Pará”.
Eneida, afinada ao ideário apreendido do Romantismo, é também típica representante do nativismo modernista, que exalta, no livro “Terra Verde”, os modos de como a cultura das ervateiras do Ver-O-Peso ressignificam a natureza, através dos poderosos e tradicionais banhos de cheiro. Banhar-se com as ervas vindas das florestas que circundam a cidade para tratar-se a si, de modo mágico, curativo.

Dalcídio Jurandir ainda novo. Foto: Paulo Nunes / Arquivo Pessoal.
Outro autor que trabalha na linha das ecopoéticas amazônidas, talvez o maior de seu tempo (no século XXI), é o marajoara Dalcídio Jurandir (Ponta de Pedras, 1909/ Rio de Janeiro,1979). E sobre a criação estética do escritor como um ‘agroliterato’, aqui tratado, tenho-o como um dos principais nomes de uma literatura de resistência, em prol da defesa dos biomas amazônicos.
Primeiro talvez se devesse questionar se um locus como o Marajó (espaço que as elites do latifúndio delimitaram, com as devidas restrições, à exploração pela caça, pela pesca, pela agricultura), onde nasceu Dalcidio Jurandir, traz “embutido” um projeto político-estético de nosso Autor, que é atravessado por uma criação metalinguística com a força metafórica de um autor que escreve como se arando a terra estivesse.
Dalcídio Jurandir é escritor que escreve sua literatura: romance, cartas, poemas, reportagens como se preparasse o solo para semear palavras. Explico-lhes, “Os Poemas Impetuosos“ (Belém, PakaTatu, 2011) são os primeiros textos que Dalcídio, ainda infante (no sentido etimológico, “aquele que ainda não fala”) manipula, “em laboratório” as metáforas para, mais tarde, transformar-se num dos maiores romancistas brasileiros do Modernismo. Assim é que transcrevo em voz emocionada seu ingênuo poema intitulado “Os jambeiros”:
No silêncio do arrebalde
A manhã amadurece os jambos
E anima a festa dos pássaros.
E os jambos são tão gostosos
De um gosto ingênuo de ternura
Macio e selvagem,
Gosto de boa terra orvalhado e cheirosa
De água travessa a cantarola no fundo das espessuras,
De alegrias anônimas,
De sossegos vegetais pelo mundo,
De infâncias perdidas que ficaram,
Como raízes humanas nas fruteiras.
Quando vais entre os jambeiros
Colher os jambos maduros,
As árvores te cobrem de orvalho
E o céu se veste de sol,
E vens coroada de orvalho como toda
Enfeitada de pérolas
E envolta de luz como se fosse toda
A manhã de verão
Com as mãos cheias de jambos…
(JURANDIR, In: “Poemas Impetuosos”, Belém, PakaTatu, 2011)
Há, no poema acima, uma celebração da natureza, uma enunciação camponesa, atravessada de simplicidade vocabular, através de metáforas sublimes que reiteram a ligação do eu-lírico com o espaço circundante. Percebe-se, já na década de 20 do século passado, este poeta iniciante no campo da linguagem, rabiscando um estilo por vezes trôpego, mas que já destila uma enunciação agroliterária, um “gosto ingênuo de ternura/ macio e selvagem”. As metáforas saúdam a mãe terra, a feminilizam numa forma panteísta e descritiva, uma natureza antes da exploração destrutiva do capitalismo. Estamos ante a uma ideia sinuosa de agricultura, agricultura forjada pelo verbo. Nem a propósito, o dicionário Houaiss de Língua Portuguesa, assim conceitua agricultura:
substantivo feminino; [na acepção 1]: atividade que tem por objetivo a cultura do solo com vistas à produção de vegetais úteis ao homem e/ou à criação de animais; lavoura; [na acepção 2]: conjunto dos métodos e técnicas necessários a essa produção”. (Houaiss eletrônico, s/p, versão ME 200 NT/XP)
“Cultuar o solo”, “produzir conforme o solo é preparado”, cultura da terra na reutilização que dela o ser humano faz. Se ressignificarmos, através da metáfora, a ideia de um método de cultuar, cultivar a terra, teremos os ecoliteratos e acoliteratas como dignos cultores da terra, na melhor desfaçatez daqueles que aram o texto, fazendo dele aflorar, com poeticidade e vigor expressivos, as demandas humanas as mais fundamentais: não temos condições de sobreviver sem a natureza.
Assim é que chego a Dalcídio Jurandir, que é autor daquilo que em “Pedras de Encantaria” (Belém, EdUnama, 2001) apontei como o autor de uma ‘aquonarrativa’, estratégia enunciativo-literária, que em síntese, faz oposição à ‘sedenarrativa’ de Graciliano Ramos (sobretudo no livro “Vidas Secas”). A ‘aquonarrativa’ é, assim, um modo de enunciar e enunciar-se diante do mundo; escrever e inscrever-se na amazonicidade líquida, privilegiadamente presente nos romances marajoaras – “Chove nos campos de Cachoeira”, “Marajó” e “Três Casas e um Rio”. Nas três narrativas lemos as águas diluídas em sintaxe, léxico, semântica, sonoridades e reiterações: a mais das vezes, escrever a natureza com poesia, artifício estético, expressivo via a mimesis. Em outras palavras, a natureza serve de modelo expressivo para a literatura.
Esta minha ‘leitura devaneante’ faz-me pensar que não há a aragem da terra sem a água que a fertilize, bafejamento de várias cosmogonias (inclusive no livro sagrado hebraico-cristão). Não há agricultura sem o afagar da terra, epidermes que desfraldam o solo, solo que devolve, tonalizando sua terra-pele daquilo que a toca. Em retribuição, da terra-pele brotam frutos, flores e as refrescantes sombras. Nos ritos sagrados cristãos, por exemplo, vemos a água que batiza e redime, ressuscita, purifica. Assim também, guardando as devidas proporções, percebemos na literatura de Dalcidio Jurandir.
Ainda nos desdobramentos agroliterários de um texto singular, o autor de Belém do Grão-Pará é o exímio reinventor do caroço de tucumã; o tucumã, de inúmeras utilidades para o caboclo marajoara, enfim, amazônico; tucumã, semente de mitos, e no Ciclo do Extremo Norte, uma espécie de varinha de condão com a qual Alfredo – protagonista de 8 dos 10 romances amazônicos – lança mão nas horas de angústia, solitude e desacertos, enfim, o personagem empreende “fuga”, diante tanto dos campos queimados de Cachoeira, quanto dos desacertos da vida de garoto (incomodavam-lhe, por exemplo, a cor e a condição social de desprestígio de sua mãe preta, Amélia, amasiada com um pai branco, maior, digo major, Alberto, prestigiado secretário da intendência municipal de Cachoeira). Alfredo, no entanto, necessitava migrar para a capital do Pará, com o objetivo de estudar e, assim, descortinar um futuro promissor. Neste sentido, Alfredo é uma representação de todos interioranos (em especial dos marajoaras) que necessitam migrar para Belém para procurar um lugar ao sol. Fazer ‘romance de migração’ não é algo fácil; a migração é um dos males da contemporaneidade, como se pode ver pelas diásporas que estão a ocorrer para a Europa e para os demais países ricos do nosso mundo.
Passo agora a trazer à cena a voz do narrador de ”Chove nos campos de Cachoeira”, industriado pelo autor empírico, pois desta feita meus argumentos ficarão tanto mais efetivos quanto mais eu os puser em diálogo com Dalcídio Jurandir e suas máscaras de linguagem:
Voltou muito cansado. Os campos o levaram para longe. O caroço de tucumã o levara também, aquele caroço que soubera escolher entre muitos no tanque embaixo do chalé. Quando voltou já era bem tarde. A tarde sem chuva em Cachoeira lhe dá um desejo de se embrulhar na rede e ficar sossegado como quem está feliz por esperar a morte. Os campos não voltaram com ele, nem as nuvens, nem os passarinhos e os desejos de Alfredo caíram pelo campo como borboletas mortas. Mais longe eram os campos queimados, a terra preta do fogo e os gaviões e os gaviões caçavam no ar os passarinhos tontos…“ (Edição Crítica, Assis, Rosa, Belém, Unama, 1998).
Acima elementos fundamentais ganham espaço na descrição dos campos de Cachoeira: o caroço, a falta de chuva que atrai a possibilidade da morte, campos impregnantes, que colam como tatuagem em nossos olhos e marcam a experiência de Alfredo. Há o emprego de certos significantes que ampliam a força enunciativa através da metáfora desconcertante: “os desejos de Alfredo caíram pelo campo como borboletas mortas”.
Temos, pois, aí uma espécie de agroliteratura cunhada por Dalcídio Jurandir, que é forma enunciativa singular, espécie de elocução do solo, através do recurso aproximativo em que determinadas personagens da narrativa são equiparadas a elementos da natureza, constituindo, o romance de Dalcidio, um dos mais intensos exemplos entre os autores modernistas brasileiros. Esta forma de escrita configura um discurso ecopoético, em defesa do meio ambiente. Dalcídio elabora, em alguns de seus textos, manifestos de como o ser humano, através do jogo enunciativo, interliga-se ao cordão umbilical da Gaia, a mãe Terra.
Outro aspecto que salta aos olhos é a intensa presença dos mitos amazônicos – a Matinta Perera, o Boto, a Cobra Grande, que interagem com as personagens e configuram recorrências poéticos didáticas, o reforço de uma ecoescrita, de uma agroliteratura, da qual o maior exemplo é narrativa sobre Bibiano, o avô de Alfredo; excerto retirado do romance “Passagem dos Inocentes”:
O avô, calombento, andava um pouco de banda, o peito ossudo, queixoso dos rins; do cabelo cinzento as moitas em volta da careca tostada, um olhar de zangadão fingidor, mesmo dizendo uma graça era sisudo; mesmo com a caninha lhe subindo, o sempre pausado no falar. Tinha uma voz de provérbio. Sentado no molho de cipó, entre os cestos de tala ainda verde, o avô destrançava as fibras, ou no mochinho a enfiar tala por tala, os dedos, que pareciam entrevados, no tecer tão maneiro, tão sabidos, o avô dedilhava. E Alfredo teve uma semelhante visão: o avô não tecia, tocava.
O cantar, e o gemer, o bulício das folhas e do chão saíam de sua harpa (que harpa, Alfredo via, horas, no dicionário). Os cestos e paneiros enfeixados noutra manhã, lá se iam no ombro do avô para o trapiche. Entre o avô e os miritizeiros os havia uma sociedade. Das folhas de miriti que trazia, compridas ripas, saía que saía paneiro, quanto? E aqui em casa era todo de miriti o paredame da cozinha, varanda, fundos, porta, janela de miriti. Até possível seria que ao ver o velho, os miritizeiros avisavam: lá vem o nosso bom Bibiano. O miriti era o fio de sua fiação, dizia. E do miriti dava ao neto os frutos luzentes duros, casca vermelha, polpa dourada. Quem mandava para o chalé aqueles paneiros de miriti era sempre o avô. As frutas na despensa iam aos poucos amolecendo, ou coziam na lata d`água fervendo, delas a mãe espremia o vinho. Bom camarada o miriti, caroço grelando no caminho do igarapé onde, na enchente, as frutas bubuiavam, já moles que Alfredo com delícia descascava devagarinho comia. Seguiu uma vez o avô até o miritizal, o velho ali sentava, também miritizeiro, silencioso: antes de apanhar as palmas olhava os seus iguais um a um, como se quisesse mesmo ser um deles, ou dentro de cada um visse uma pessoa de seu sangue. (In: Passagem dos Inocentes, 2 ed., Belém, Falangola Editora,1984).
O excerto acima constitui-se numa espécie de preamar, enunciativa de uma escrita sedutora, uma poética de entrelaçamento profundo entre o homem ribeirinho e a natureza. Enfim, uma narrativa pensada no sentido de tocar o leitor e lembrá-lo de que não há saída para a espécie humana, se a natureza for respeitada, tratada como uma “parente”, tal qual Bibiano e as “árvores” de miriti. Trata-se de um narrador ‘em conluio’ com as personagens, observador e por detrás da cena. Um modo de demonstrar como a literatura de Dalcídio Jurandir ressignifica de preservar a floresta, mantendo-a em pé, com o devido respeito que a natureza merece.
Finalmente, aproximo-me do final deste texto, que desvela um fragmento de uma geopoética da Amazônia paraense, em que a literatura e a preservação da natureza resumem um projeto estético e político de resistência do autor marajoara. A natureza, no meu modo de ver, tem como objetivo contribuir ativamente no debate sobre a preservação do planeta, com ou sem COP30. Dalcídio é um exemplo prático disto. Dalcídio Jurandir, propicia, em sua literatura, a mani(in)festação da natureza, e ela quando é instada a manifestar-se nos seduz, feito uma Uiara das mitopoéticas amazônicas.
Belém, Pará, junho de 2025.
Paulo Nunes é professor da Universidade do Estado do Pará (UEPA) e da Universidade da Amazônia (Unama); sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Pará (IHGP).
Revisão e edição: Juliana Carvalho
Montagem da página: Alice Palmeira
Direção: Marcos Colón