Produtores da Amazônia chegam à mesa da COP30
Iniciativa inédita na história de uma COP, institutos se mobilizaram para que agricultores orgânicos locais forneçam os insumos e os stands vendam receitas típicas


Agricultor paraense. Foto: Oswaldo Forte/Amazônia Latitude.
Enquanto líderes mundiais se reúnem em Belém para discutir o futuro do planeta, são os agricultores familiares, povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais que, pela primeira vez na história das Conferências do Clima da Organização das Nações Unidas (ONU), vão colocar o alimento na mesa. A comida que vai ser servida na COP30 terá o sabor e a força de quem vive e protege a Amazônia.
Até então, o principal critério para as refeições vendidas no evento era o da praticidade, priorizando o fast-food. Mas a pressão das ONGs ligadas à produção de comida orgânica e o argumento de que este é o momento de valorizar quem cuida da biodiversidade da maior floresta do mundo, venceu. A medida representa uma alternativa de uso sustentável da terra em um Estado marcado pelo desmatamento e pela monocultura.
São pelo menos 300 mil agricultores no Pará, que têm sido mapeados e selecionados pelo poder público desde o início deste ano.
Com essa decisão, a COP30 se torna um marco simbólico e político: coloca no prato dos negociadores globais a produção daqueles que, por séculos, levaram os alimentos mais saudáveis possíveis para a mesa dos moradores locais.
Mais que fornecedores, sujeitos políticos
Na última cúpula do G20, em novembro do ano passado no Rio de Janeiro, agricultores, quilombolas e povos tradicionais publicaram uma declaração cobrando o fim da invisibilidade em eventos internacionais, exigindo respeito aos seus sistemas alimentares, modos de vida e saberes.
Eles reforçaram que valorizar a agricultura familiar não é caridade — é uma solução climática. Afinal, esses agricultores manejam a terra com baixa emissão de carbono e são os verdadeiros guardiões de biomas como a Amazônia.
Mobilizações como essa plantaram a primeira semente na adoção de insumos locais na mesa da Conferência da ONU. A Secretaria da COP30 (Secop), ligada à Casa Civil, tem selecionado e confirmado os trabalhadores para participarem do evento.
Os agricultores familiares ficarão responsáveis somente pelo fornecimento dos insumos. A elaboração dos pratos será de cozinhas credenciadas. Quais serão essas cozinhas e qual o número de stands ainda não foi definido.
O que se espera é que cardápio seja uma celebração à culinária amazônica, mas que contemple também a de outros países, além de dietas restritas.
Quem define as regras é a UNFCCC, a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima.
Para chegar até os pequenos agricultores, a Secop vai filtrar as informações do Cadastro Nacional da Agricultura Familiar (CAF), selecionando aqueles que atendem aos requisitos técnicos e operacionais, que ainda estão em fase final de definição. Fornecedores de Estados vizinhos ao Pará, como o Amapá e o Maranhão, estão sendo considerados, desde que cumpram também os critérios logísticos.

Hortas orgânicas. Foto: Oswaldo Forte/Amazônia Latitude.
Ainda sem dados consolidados, a Secop informou à equipe da Amazônia Latitude que ainda não dispõe “do número de envolvidos nem de contatos específicos para entrevistas”.
Quem cuida do Cadastro no Pará é a Secretaria de Estado da Agricultura Familiar (Seaf-PA), que já começou a contatar diretamente algumas instituições. É o caso da Pará Orgânico, uma Organização de Controle Social (OCS) credenciada pelo Ministério da Agricultura, que reúne 27 associações em 5 municípios da Grande Belém.
Cada produtor da Pará Orgânico tem seu próprio espaço para cultivar tubérculos, frutas e hortaliças (principalmente as folhosas), e para o extrativismo de alimentos como a castanha-do-Pará. Sem agrotóxicos e sem atravessadores, esses alimentos chegam fresquinhos no Horto Municipal, onde são vendidos às quartas-feiras, e nas Praças Brasil e Batista Campos, onde são comercializados aos sábados. Além desses lugares, eles são enviados para outras feiras pontuais da capital paraense.
Ieda Bentes, titular da Pará Orgânico, afirma que as expectativas em relação à COP30 são boas, e que “é muito válido a gente ter um espaço [no evento] onde possa colocar os nossos produtos”.
A instituição oferece principalmente insumos, como tucupi, jambu, maniva cozida ou crua, farinha, pimenta, cheiro verde e goma de tapioca. Mas na relação que enviou à Seaf, também constavam pratos regionais, que podem ser preparados diariamente por alguns de seus produtores: maniçobas normal e vegetariana; salgados de pirarucu; croquete de jambu; pizza de macaxeira com berinjela; bolo de tapioca e de banana; pudim de cupuaçu, entre outros.
Ieda ressalta que é preciso apenas acertar com antecedência a quantidade real de insumos e pratos necessários, que provavelmente será maior do que a demanda atendida pelo grupo semanalmente. A titular acredita que vai contar com agricultores de outros municípios, como Santarém e Óbidos, no oeste paraense. Contudo, o envio dos insumos leva dias de viagem de navio até Belém (três dias desde Santarém e quatro desde Óbidos).
“O nosso produto mesmo não precisa viajar dias para estar no mercado. Nós temos grupos de produtores para bancar uma boa parte dos nossos alimentos para [os stands] da COP30. Mas caso precise de mais, a gente precisa ter esses acertos com antecedência”, pontua.

Feira de Produtos Orgânicos, na Praça Brasil, em Belém. Foto: Nayra Wladmila/Amazônia Latitude.
Ela explica que “basta ter uma política eficaz para buscar esses insumos que nós temos em várias regiões daqui do nosso Estado. Precisamos conversar antecipadamente para saber quais estarão disponíveis nessa época do ano, pois eles são sazonais; e pedir para os agricultores plantarem, para termos a garantia da compra e transporte. Quanto a essa logística, o Governo não se posicionou ainda”.
O último contato com a Seaf foi em abril, quando a Pará Orgânica preencheu um cadastro durante o levantamento de dados da produção no Estado. “A partir daí, não tivemos mais nenhum retorno. Não estamos sabendo de nenhum edital de compras, também”, afirma Ieda.
Já a Rede Bragantina de Economia Solidária, composta por 15 associações do nordeste paraense e com sede em Belém, sequer foi procurada pela Secretaria de Estado da Agricultura Familiar.
Apesar disso, José Vicente, um dos responsáveis pela Rede, já se articula para atuar na Conferência. A sua previsão é fornecer insumos e pratos para instituições e movimentos com quem já havia assumido compromisso. Todos os pratos têm como base produtos regionais, na quantidade de 300 a 500 por dia.
Enquanto a COP não começa, a equipe fornece coffee-breaks em eventos diversos. As associações estarão ativas nas plenárias da Cúpula dos Povos, que deve reunir 15 mil pessoas, entre os dias 12 e 16 de novembro, na capital paraense.
A Seaf-PA não comentou sobre o andamento das negociações no Pará até a publicação desta reportagem.
Cidades também têm fome de mudança
Quem acompanha mais de perto as associações são os Institutos Comida do Amanhã e Regenera. Desde 2024, eles têm mapeado os produtores da região, orientado sobre boas práticas para comercialização e os incentivado a serem fornecedores de alimentos no evento em Belém. Tanto a Pará Orgânico quanto a Rede Bragantina E.S. confirmaram o apoio dos Institutos para conquistarem mais visibilidade.
Maurício Alcântara, co-fundador do Instituto Regenera, afirma que, desde o anúncio de Belém como a sede do evento internacional, busca entender os trâmites entre o país-sede e a UNFCCC. Eles acompanham desde as nomeações até os editais que são publicados.
O Instituto formou uma coalizão não somente com o Comida do Amanhã, mas com outras organizações da sociedade civil e com produtores de forma a “estimular/cobrar/apoiar/subsidiar” o trabalho desempenhado pela Secop. O nome da coalizão é “Na Mesa da COP30”.
“A alimentação sempre é um tema negligenciado nas COPs. Os países-sede investem muito para adotar o máximo de práticas sustentáveis para ‘fazer bonito’ diante da opinião pública internacional, com frotas de ônibus elétricos, subsídio/estímulo do uso do transporte público pelos frequentadores, adoção de energia renovável, ações de reciclagem, etc, mas a alimentação nunca é percebida como ação climática significativa, embora os sistemas alimentares correspondam a aproximadamente 30% das emissões globais de gases de efeito estufa [GEE]”, explica Maurício.
Ele relembra que, “na prática, é uma comida muito ruim, cara, e sem nenhuma conexão com a cultura alimentar do país-sede. As pessoas levam lanchinhos do hotel para comer melhor durante o dia. Para se ter uma ideia, a COP27, no Egito, era patrocinada por uma marca de refrigerante. Na COP28 houve algum avanço, cerca de 80% dos cardápios eram de origem vegetal – o que é factível em um país desértico, onde a maior parte da comida é importada. Já na COP29, em Baku, a situação voltou a ser a de sempre”.
O co-fundador do Instituto Regenera reforça que o Brasil é um dos países mais biodiversos do mundo, um dos maiores produtores de alimentos, e que conta com políticas públicas alimentares que são referência internacional.
Em contrapartida, a nação também é o 5º maior emissor de GEE do mundo, sendo o Pará o maior emissor do Brasil. Pelo menos 74% delas vêm direta ou indiretamente da produção de alimentos. Um terço das emissões pelo mundo geram alimentos ultraprocessados, como os refrigerantes e os hambúrgueres.
Atualmente, o Estado sede da COP30 conta com aproximadamente 300 mil agricultores familiares, abastecendo principalmente o mercado local. Mandioca, castanha-do-pará, abacaxi, coco, açaí e pimenta-do-reino são alguns dos alimentos cultivados por eles.

Atualmente, o Estado sede da COP30 conta com aproximadamente 300 mil agricultores familiares. Foto: Nayra Wladmila/Amazônia Latitude.
Na Amazônia Oriental, onde o Pará está localizado, a agricultura familiar é especialmente vital porque protege a biodiversidade da área mais desmatada da maior floresta do mundo.
Centenas de comunidades, em sua maioria indígenas, quilombolas e ribeirinhas, têm a agricultura como base econômica, social e cultural. Essas famílias empregam o manejo sustentável do solo e da plantação: usam vegetação nativa e diversa, conservam o solo, respeitam o ciclo da natureza, evitam fertilizantes e agrotóxicos.
Evitam, assim, o desmatamento predatório em uma Amazônia atingida pela mineração, monocultura voltada à exportação, queimadas e pela retirada ilegal de madeira e animais. Abastecem o campo e as cidades com alimentos frescos e acessíveis.
Fortalecida, a agricultura familiar garante a autonomia dos seus pequenos produtores, estimula a sua permanência no campo ao invés da sua mudança para a cidade, e reduz a desigualdade no meio rural. Incentivar essas práticas é investir em uma Amazônia viva e produtiva, onde é possível gerar renda sem destruir o meio ambiente.
Por isso, a Coalizão “Na Mesa da COP30” viu uma oportunidade única de, pela primeira vez, colocar a comida agroecológica no meio do debate, mostrando as diferenças entre a produção alimentar que é amiga do clima e a que não é.
Ainda em 2024, o grupo sugeriu à Secop a priorização da produção local de comunidades tradicionais, projetos agroecológicos e orgânicos e de reforma agrária. Para tal, mapeou a base produtiva por meio das cooperativas, associações e movimentos sociais. Eles usaram o próprio trabalho do Instituto Regenera e levantamentos de outras entidades e órgãos públicos. Dessa forma, concluíram que há oferta de insumos o suficiente para os estandes da Conferência.
Mesmo que a UNFCCC tenha exigências quanto ao cardápio, a proposta das ONG´s é que o abastecimento venha da sociobiodiversidade amazônica. Não só isso: que esses alimentos continuem chegando à mesa de quem vive na Região Metropolitana de Belém, graças à visibilidade que os agricultores estão recebendo e ao apoio público e privado.

A proposta das ONG´s é que o abastecimento venha da sociobiodiversidade amazônica. Foto: Oswaldo Forte/Amazônia Latitude.
Nacionalmente, esses institutos também têm articulado eventos para troca de experiências e a construção de propostas para que sistemas alimentares passem a ser tratados como políticas climáticas. É o caso da Liga Urbana pela Política de Alimentação (LUPPA), realizada pelo Instituto Comida do Amanhã e pelo pelo ICLEI – Governos Locais pela Sustentabilidade.
Reconhecida internacionalmente, a LUPPA existe desde 2021 e já contou com a participação de 597 agentes públicos. No último mês de maio, houve uma etapa presencial em Barcarena-PA. Prefeituras de 38 municípios participaram, como de São Paulo-SP, Curitiba-PR, Recife-PE e Santarém-PA.
As propostas vão desde compras públicas de produtos da agricultura familiar até iniciativas de combate ao desperdício, agroecologia urbana e valorização da cultura alimentar local.
Esse movimento fortalece a ideia de que a COP30 não deve ser apenas um espaço simbólico, mas um ponto de virada para políticas alimentares que enfrentam a crise climática na prática.
“Nós não somos os responsáveis pela alimentação da COP, o que estamos fazendo é uma campanha de sensibilização da opinião pública e dos atores responsáveis no governo. Mas estamos acompanhando de perto todas as movimentações deles. Os impactos positivos desejados são garantir reconhecimento e visibilidade à produção de alimentos aliada do clima e da floresta, demonstrar que essa produção existe em quantidade suficiente para alimentar grandes quantidades de pessoas, e que só é preciso estímulo e vontade política para que a priorização desses produtores aconteça não somente durante uma conferência do clima”, finaliza Maurício Alcântara.
Texto: Nayra Wladmila
Revisão e edição: Juliana Carvalho
Montagem da página: Alice Palmeira
Direção: Marcos Colón