Jorge e o retrato do anonimato – revisitando Serra Pelada de Sebastião Salgado
Quarenta anos após Serra Pelada, as fotos de Sebastião Salgado seguem revelando corpos enquanto invisibilizam sujeitos como Jorge, homens negros da Amazônia à margem da história oficial
![Jorge [nome fictício], jovem garimpeiro negro, esgotado do trabalho, se vira contra o barranco e mira o fotógrafo. Foto: Sebastião Salgado / Divulgação (via).](https://www.amazonialatitude.com/wp-content/uploads/2025/07/ss-900x500.webp)
![Jorge [nome fictício], jovem garimpeiro negro, esgotado do trabalho, se vira contra o barranco e mira o fotógrafo. Foto: Sebastião Salgado / Divulgação (via).](https://www.amazonialatitude.com/wp-content/uploads/2025/07/ss.webp)
Jorge [nome fictício], jovem garimpeiro negro, esgotado do trabalho, se vira contra o barranco e mira o fotógrafo. Foto: Sebastião Salgado / Divulgação (via).
Com o falecimento de Sebastião Salgado (1944-2025) em maio, partes de sua obra fotográfica foram expostas nas redes sociais e por reportagens que resgataram os registros tão importantes para a construção de interpretações sobre eventos históricos no Brasil, como as fotos do massacre de Eldorado dos Carajás e da multidão de garimpeiros de Serra Pelada. Foram fotografias tomadas no Pará e ambas se tornaram uma representação do avanço da fronteira capitalista nas décadas de 1980 e 1990, permitindo que através das fotos se falasse de temas como violência no campo, mineração, exploração do trabalho e terra.
As fotos de Serra Pelada (1986) me chamam a atenção sempre que as vejo. Anos atrás eu havia comprado pela internet um pequeno livro com fotos de Sebastião Salgado, mas não era de Serra Pelada, para mim, se tratava de um jeito de compreender mais o olhar de Salgado. As coleções e séries também são caras. As fotos de Serra Pelada foram organizadas como livro-série somente em 2019 sob o título “Gold”. O que tive acesso foi por meio de publicações na internet. E o que me tocava, em especial, era a revelação da imagem dos sujeitos, a textura dos corpos e a impressão do retrato como captura histórica.
Mas também tenho um interesse particular. Como pesquisador, uma das primeiras entrevistas completas que fiz em campo com um gravador em mãos e um caderno apoiado sobre a perna, foi com um senhor negro e idoso em uma comunidade no interior do Maranhão, em 2013. Meu maior interesse com o entrevistado era saber a história e trajetória de sua família. Fiz perguntas sobre trabalho, deslocamento, laços de parentesco, origens de seus pais e outros temas que me dessem elementos sobre essa trajetória.
Acabei me deparando com um ex-garimpeiro que me questionava sobre o que eu queria dizer com escravidão, já que ele, em um de seus muitos deslocamentos, tinha sido vÍtima do trabalho escravo em uma fazenda em Paragominas, antes de ir para os garimpos do Crepori, em Itaituba, no Oeste do Pará. Era uma interpelação e uma atualização.
Desde então, no Pará e no Maranhão, tenho encontrado em novas pesquisas sujeitos como ele, sujeitos que são personagens constantes em diferentes paisagens marcadas e atravessadas pelo garimpo e pelo deslocamento. Esse senhor era como um personagem presente nos registros de Serra Pelada, ele mesmo já tinha garimpado lá e eu poderia conhecer quem ele era e como eram aqueles garimpeiros.
Fotografia e interpretação
Na sociologia brasileira, tivemos autores considerados intérpretes, como Caio Prado Júnior, Darcy Ribeiro e Gilberto Freyre. Todos foram escritores curiosos e esforçados em elaborar formas de compreensão do Brasil como nação, ou seja, com um povo e um território. Em seguida, outros pensadores e pensadoras puderam criticar suas teorias e, ao mesmo tempo, reconhecer a contribuição relevante formulada por eles. Outros sociólogos, autores de obras significativas não tiveram o mesmo reconhecimento. O próprio Clóvis Moura (1925-2003), que não só foi um intérprete negro do Brasil, mas um intérprete do Brasil negro, e produziu novos olhares sobre as questões sociais do país, não obteve o mesmo nível de destaque acadêmico. Tivemos algo semelhante no campo da literatura com os clássicos do século XX, como Rachel de Queiroz (1910-2003), intérprete do nordeste brasileiro através de seus romances, que obteve reconhecimento ao compor a Academia Brasileira de Letras (ABL).
Era o ano de 1986 quando Sebastião Salgado entrou na Serra Pelada para compor sua obra. A lama tomava o cenário e os corpos dos garimpeiros. O contraste ressaltado pelo preto&branco – uma marca de Salgado – destacava o espaço sujo e o trabalho sujo. Cobiça, era o que se tentava captar pelas lentes. Sebastião Salgado falava dos escravos do ouro e do desejo irrefreável de fazer fortuna. O jornal The New York Times, em 2024, destacou uma das fotos de Serra Pelada como uma definição da modernidade, pela forma brutal da exploração do trabalho e da natureza. Era um reconhecimento da interpretação feita pelo fotógrafo.
No filme “Sal da Terra” (2014), sobre Sebastião Salgado, ele narra o que viu em Serra Pelada e a descreve como um lugar da procura por fortuna. O Pará, Estado da Amazônia onde fica Serra Pelada, foi lido e relido como um lugar da ganância e da violência. Muito de realidade, mas um tanto de mito também. Não só pela quantidade de conflitos e casos estimados, mas em razão das lentes usadas para fazer a leitura sobre ele. Ao registrar, e com isso representar, se criou imagens de Serra Pelada, ao mesmo passo, Sebastião Salgado também criou uma imagem do garimpeiro.
Em todas as fotos de Serra Pelada se percebe que a maioria dos garimpeiros eram negros. Não tivemos no Brasil pesquisas de censo até 2022 que traduzissem em dados estatísticos a população negra do campo. Apenas os dados sistematizados pela Comissão Pastoral da Terra identificam a maioria de negros entre os trabalhadores rurais encontrados em condição de escravidão em fazendas. Em 1986, Sebastião Salgado revelava os negros no garimpo e os leu como escravos do ouro.

Multidão de garimpeiros de Serra Pelada. Foto: Sebastião Salgado / Divulgação (via).
Jorge: um nome para existir
A foto que mais me chama a atenção é aquela em que um jovem garimpeiro negro, esgotado do trabalho, se vira contra o barranco e mira o fotógrafo. Não aparenta posar para a foto, ao contrário, tenta olhar nos olhos do homem por trás das lentes. A fotografia foi sobre uma multidão e aquele sujeito intervém na proposta artística. A partir do imaginário sobre este homem negro garimpeiro tentarei abordar aqui conexões sobre o sujeito que se interpõe frente a captura histórica.
A existência se dá pela palavra, pelo nome. Em um ensaio fotográfico de multidões, assim como em tantos estudos sociológicos, o nome e a subjetividade ficam apagados ou invisibilizados por categorias analíticas. Na literatura, dar nome ou negar o nome pode ser instrumento narrativo. Como em ”Ponciá Vicêncio”, de Conceição Evaristo, que não dá nome ao marido agressor da protagonista. Em “Úrsula” e ”A escrava”, de Maria Firmino dos Reis, a autora evidencia os sujeitos escravizados ao lhes dar desde o início da narração nomes e familiares.
Digamos que esse sujeito da fotografia seja Jorge [nome fictício]. Pelas vivências que tenho tido, atribuo a Jorge algumas características, no campo do imaginário. Jorge é maranhense, do Pindaré, sua família não tinha terra e trabalhava para um fazendeiro. Jorge tinha irmãos e irmãs, Teria mais, se não fosse a alta taxa de mortalidade de recém nascidos. Seus avós moravam na mesma comunidade. Eram devotos de São Raimundo e no festejo do Santo, Jorge ajudava tocando tambor. Um Tio de Jorge o levou para Serra Pelada. Um vizinho de Jorge também foi, mas morreu ao cair do barranco no primeiro dia de trabalho. Jorge, seu Tio e seu vizinho já tinham passado fome antes de irem ao Pará. Jorge gostava de brincar de boi, de comer gongo frito e queria conhecer o Rio Amazonas.
A revelação de um ninguém
A fotografia como narrativa e interpretação é um instrumento de poder. A representação da modernidade seria uma expressão da própria racionalidade moderna. O que quero dizer é que o cenário fotografado é tanto uma representação emblemática da modernidade quanto a forma de olhar para esse cenário. Não se trata de um julgamento moral, mas de uma análise sobre essa forma de ver o mundo. Sueli Carneiro tem escrito há bastante tempo sobre o racismo e o dispositivo da racialidade e assim explica como se cria o Eu e o Outro subalterno e inferiorizado. O Outro escravo de sua própria cobiça predestinado a não ser sujeito de sua história. Denise Ferreira da Silva escreve há anos sobre como as metodologias para explicar ou representar a subjugação racial não permitem sua ruptura por serem abordagens fundadas em parâmetros modernos.
A exposição de Serra Pelada no Sesc, com o título “Gold – mina de ouro Serra Pelada”, em 2019, trazia a seguinte explicação: “O que dizer desse metal amarelo e opaco que leva homens a abandonar seus lares, vender seus pertences e cruzar um continente, a fim de arriscar suas vidas, seus corpos e sua sanidade por causa de um sonho?” Percebe-se a construção de narrativas que acompanham as fotos documentais e ocluem os sujeitos.
Pessoas como Jorge foram lidas como camponeses, sem terras, garimpeiros, criminosos, desempregados e outras possibilidades de classificação. A negação da raça era a negação dele. Não ver Jorge como negro em uma multidão de negros é não vê-lo. E vê-lo como o Outro não permite a construção de um futuro. Jorge estaria predestinado a estar em muitos sentidos enterrado e soterrado.
Marina Feldhues articulou, em artigos científicos, as reflexões dessas autoras para analisar a obra de Sebastião Salgado, especificamente a obra Genesis (2013). A leitura anticolonial de Marina permitiu a provocação sobre o congelamento no espaço-tempo presente na obra ao retratar povos da Ásia específicos. No entanto, a fotografia, e ainda mais a fotografia documental de Sebastião Salgado, apresenta inevitavelmente uma contradição. A série fotográfica de Serra Pelada é um dos poucos registros do avanço da Fronteira nessa porção Amazônica, tal como os filmes de Bodanzky. A repercussão de sua obra foi estrategicamente utilizada por movimentos sociais como fotografia-denúncia.
Com isso, quero apontar que a fotografia é um novo ponto de partida da crítica. Desde que foram lançadas, as fotos foram alvo de críticas, com o argumento de que era uma estetização da pobreza. Mas apresento outro tipo de crítica. Sebastião superou os naturalistas, provocando com imagens das feridas sociais, expondo as brutalidades, mas não rompe com elas. É dizer que a foto de Jorge o revela, circula o mundo em exposições, mas ele continua um ninguém.
Sujeitos do futuro estão no passado
Jorge teria hoje em sua casa uma foto sua com a neta no colo? Teria ele um álbum de família para mostrar para as visitas que recebe no sítio? Uma foto da formatura da filha pendurada na sala? Ou teria ele ido para os garimpos na Terra Indigena Yanomami e nunca mais voltado ao Maranhão? Jorge morreu após levar facadas em um puteiro uma semana depois de ser fotografado?
Pego esse nome fictício para representar as diversas trajetórias de homens negros na Amazônia nos últimos 40 anos. A cobiça de Serra Pelada foi documentada de forma equivocada. Em sua maioria, os milhares de garimpeiros de Serra Pelada eram camponeses sem terra em busca de recurso para comprar um pedaço que desse em meio a tanta grilagem. A cobiça é própria de outro sujeito.
A representação artística de corpos como Bell Hooks aborda em Art on my Mind (1995) traduzido no Brasil por Rodrigo Lopes indica possíveis giros para a releitura de obras já consideradas clássicas. Sobrepor novos olhares a Serra Pelada 40 anos depois é redescobrir os sujeitos e narrativas oclusas, mas que estão ali.
Pedro Martins é cearense, residente em Santarém/PA, educador popular e pesquisador. Mestre em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Sustentável e Doutorando em Desenvolvimento Socioambiental pela UFPA.
Montagem da Página: Alice Palmeira
Revisão: Juliana Carvalho
Direção: Marcos Colón