Olho d’Água: Jornalismo Valente na Amazônia
Em novo episódio do podcast Olho d'Água, o jornalista Rubens Valente explora os desafios do jornalismo na Amazônia, seus custos e riscos
Rubens Valente, jornalista e criador do podcast 'Morte e Vida Javari'. Foto: Arquivo Pessoal. Arte: Fabrício Vinhas
Quanto custa fazer jornalismo na Amazônia?
Pense num jornalismo que não deixe de lado as questões locais das diversas cidades e vilas da região, mas que também se disponha a cobrir casos nos confins da floresta. Um jornalismo que leve repórteres, câmeras e microfones para lugares em que o Estado não se faz presente, mas onde estão o garimpo ilegal, a grilagem, o crime organizado, o desmatamento, o abuso contra os povos originários.
Além dos custos normais da atividade, esse jornalismo na Amazônia tem custos extras. O deslocamento normalmente requer voos caros e longos até cidades que servem de porta de entrada para a floresta. A partir daí, os custos se multiplicam.
É preciso alugar barcos ou helicópteros para alcançar áreas remotas. O isolamento às vezes encarece a comunicação, sendo necessários equipamentos especiais para o trabalho em áreas que podem não ter nem energia elétrica.
A logística também costuma ser complicada. Muitas apurações precisam contar com guias locais, indispensáveis para navegar os rios e as trilhas da floresta densa. Tudo isso representa um investimento significativo, um fardo que muitas redações pequenas ou independentes têm dificuldade em suportar.
Mas o custo mais alto não é mensurável em dinheiro e pesa até para os maiores veículos do mundo. Porque fazer jornalismo na Amazônia pode custar a vida.
Um dos retratos mais simbólicos dessa triste realidade é o assassinato de Bruno Pereira e Dom Phillips, há dois anos, em junho de 2022.
Bruno era um dos mais importantes especialistas brasileiros em povos isolados. Ele falava quatro línguas indígenas. Ele era consultor da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari, a Univaja, e ajudava a articular uma rede de proteção do território. Philips morava no Brasil há mais de 15 anos e escrevia para o jornal The Guardian, documentando tudo para um livro. Os dois denunciavam crimes como a pesca ilegal, a invasão de terras e o desmatamento na região amazônica. Uma luta denunciava crimes como a pesca ilegal, a invasão de terras e o desmatamento na região. (Iury Lima, jornalista do Jornal da Cultura)
Os assassinatos de Bruno e Dom não são casos isolados de violência contra a imprensa na região.
Segundo o relatório “Amazônia: Jornalismo em Chamas”, da organização Repórteres Sem Fronteiras, foram registrados 66 casos de ataques à imprensa nos nove estados da Amazônia Legal no intervalo de um ano – entre junho de 2022 e junho de 2023.
Os episódios incluem agressões físicas, assédios e ameaças. Um quarto dos casos estava diretamente ligado a apurações sobre agronegócio, mineração, povos indígenas e violações de direitos humanos.
A violência recorrente leva muitos jornalistas a praticarem a autocensura como estratégia de sobrevivência. Quer dizer: jornalistas muitas vezes deixam de cobrir pautas delicadas para evitar que eles se tornem estatística no próximo levantamento.
Profissionais na Amazônia relataram também muita interferência política e econômica dentro das redações – um processo silencioso de ataque à liberdade de imprensa.
Quem trabalha há décadas cobrindo histórias na Amazônia sabe dos riscos dessa atividade. E o profissional que continua até hoje nessa cobertura, é porque sabe também da importância do trabalho que realiza. É o caso do jornalista Rubens Valente.
Sempre foi importante, por tudo que a Amazônia representa. Desde criança nós sabemos disso. Não é nenhuma novidade que a Amazônia é essencial para o equilíbrio ecológico do país e do mundo. Então, é uma riqueza incalculável que, por si só, mereceria uma cobertura intensiva, extensa, diária com vários jornalistas baseados na Amazônia.
Rubens Valente nasceu em Goioerê, no interior do Paraná. Aos 12 anos, mudou-se para Dourados, no Mato Grosso do Sul, e passou a morar perto de comunidades Guaranis. O contato com esses povos fez despertar nele o interesse por assuntos indígenas.
Ainda adolescente, o instinto de jornalista já aparecia. Rubens Valente era observador e sabia ouvir. Ele ficou chocado ao ver de perto os males do alcoolismo nas comunidades indígenas e impressionou-se com os relatos de que povoados inteiros haviam sido deslocados à força por ordem do regime militar.
Sua carreira jornalística começou de fato aos 19 anos, em 1989, e não parou mais. Logo de cara ele passou a cobrir questões indígenas nas regiões Centro Oeste e Norte.
De lá para cá, já são 35 anos de jornalismo, com passagens pela Folha de São Paulo, O Globo, UOL e outros veículos. Uma jornada que lhe rendeu 20 prêmios, entre eles o Prêmio Esso de Reportagem e o de Excelência Jornalística pela Sociedade Interamericana de Imprensa.
Em 2017, Rubens publicou pela Companhia das Letras o livro “Os fuzis e as flechas – A história de sangue e resistência indígenas na ditadura”. É o resultado de anos de pesquisa. O livro lança um olhar jornalístico sobre a violência sofrida pelos povos originários ao longo da ditadura, entre 1964 e 1985 – violações que foram ignoradas ou subnotificadas em relatórios oficiais e pesquisas acadêmicas.
Atualmente, Rubens Valente trabalha na Agência Pública e está lançando uma série documental em podcast, chamada Morte e Vida Javari. A ideia é fazer uma viagem no tempo para investigar o passado e o presente do vale no extremo oeste da Amazônia onde foram assassinados Bruno Pereira e Dom Phillips.
Quando Bruno Pereira foi assassinado, Rubens perdeu uma fonte confiável e, acima de tudo, um amigo. Eles estiveram juntos em 2013 no Vale do Javari durante uma apuração.
Seria compreensível que o assassinato do amigo Bruno e do colega Dom tivesse afastado Rubens da região, por segurança própria ou por outro motivo. Mas Rubens é valente até no sobrenome e decidiu, mais uma vez, seguir o caminho que ele trilha há 35 anos. Ele escolheu fazer jornalismo na Amazônia, mesmo com todos os custos e riscos que isso envolve.
E é sobre isso que nós vamos falar no episódio de hoje.
Você está no Olho d’Água, podcast produzido pela Amazônia Latitude e que propõe um mergulho nos assuntos profundos da maior floresta do mundo.
Ouça abaixo o sétimo episódio completo:
A nossa conversa com Rubens Valente começa com uma pergunta sobre quais são os principais desafios de se fazer jornalismo na Amazônia.
Os desafios são inúmeros. São bastante sérios e, por vezes, podem inviabilizar a própria cobertura. Uma das principais dificuldades é o próprio custo dos deslocamentos hoje, na Amazônia, que demandam um alto investimento em recurso financeiro. As passagens aéreas de Rio, São Paulo e Brasília para Manaus e Belém são caríssimas. Os deslocamentos internos são caríssimos. O combustível é caro, diesel, aluguel de barco. Isso de fato é um complicador muito sério que, ao longo do tempo, piorou. Me recordo que há 20 anos, 25 anos, não era tão cara assim como está hoje em dia.
Mas quem dera as dificuldades dos jornalistas na Amazônia se limitassem a custos logísticos e tempo de deslocamento. Nos últimos anos, os profissionais que trabalham nessa cobertura têm notado um obstáculo mais perturbador.
O segundo complicador é a própria situação do crime organizado da Amazônia hoje, a vinculação com os chamados narco-garimpos. A dificuldade de exercer um jornalismo livre na Amazônia está vinculada às questões de segurança pública e também ao clima político mantido e turbinado pela extrema direita no país. Um clima de hostilidade para com o trabalho da imprensa na região.
Levando em conta os 35 anos de trabalho na região amazônica, Rubens pode se considerar um jornalista de sorte. Ele diz que os casos de violência e ameaça contra ele foram pontuais ao longo da carreira, e nem sempre ligados à cobertura socioambiental que realizava.
Mas há não muito tempo, Rubens Valente passou por um episódio que exemplifica a tensão alimentada pela extrema direita contra a imprensa na região.
Acho que vivi poucos momentos de tensão. Quero citar que os últimos ocorreram no no último ano e meio. Por exemplo, eu fui cobrir um protesto na cidade de Sinop, Mato Grosso, feito pela extrema direita que havia bloqueado uma BR, e fui expulso do sob ameaças. Eu gravei isso no telefone celular.
Fui expulso dessa manifestação por agricultores que eram bolsonaristas e se voltaram contra a imprensa, expulsaram uma outra equipe. Foi um momento de tensão. Eu tive que sair, apressar o passo sob ameaças.
O jornalista também passou por outro constrangimento durante uma apuração no Vale do Javari. Dessa vez, a coação não veio de manifestantes bolsonaristas, nem de garimpeiros, nem do crime organizado.
Depois, curiosamente, outro momento de tensão foi provocado pelo próprio Exército. Eu estava trabalhando lá no Vale do javari dentro da Univaja, que é a União dos Povos Indígenas no Vale do javari. Estava com o meu computador aberto digitando o que a pessoa estava falando no discurso. Eu estava acompanhando uma comitiva de visitantes lá na cidade, e, de repente, já havia atrás de mim um soldado do exército fotografando a minha tela do computador. Ou seja, se eu tivesse aberto ali o WhatsApp, ou outro aplicativo, ele saberia meus contatos. O fotógrafo que estava comigo, o repórter fotográfico José Medeiros, me alertou, fotografou o soldado me fotografando. E eu levantei, indaguei o soldado e percebemos que havia uma orientação dos superiores dele, que estavam lá, porque instantes antes, minutos antes, eu havia inquirido um general que estava lá no local sobre diversas denúncias que os indígenas tinham feito na frente do general e que demandavam resposta do Exército sobre contrabando, sobre a entrada indiscriminada de invasores nas terras indígenas lá do Javari, e o general nada respondia. Quando acabou a fala dos líderes indígenas, o general passou pela minha frente, eu liguei o gravador e comecei a inquiri-lo. Depois disso, ocorreu essa coação, posso dizer assim, essa pressão indevida. Depois o exército negou que tivesse alguma ficha em meu nome, mas foi tudo documentado.
Rubens Valente já trabalhou em alguns dos maiores veículos brasileiros, como Folha de São Paulo, O Globo e UOL. Perguntamos, então, como ele vê o jornalismo socioambiental praticado na Amazônia pela imprensa tradicional.
Infelizmente, eu não vejo esse avanço do chamado jornalismo socioambiental no cenário de hoje nas redações dos principais veículos. Aí, falando da imprensa tradicional. Por outro lado, você tem uma miríade de veículos Independentes, pequenos e médios veículos digitais, que aí sim, você vive uma explosão de pautas, de trabalhos, de reportagem de campo. Como a Agência Pública, a Repórter Brasil, a Sumaúma, O Joio e O Trigo, Brasil de Fato e The Intercept. Ou seja, vários outros veículos nasceram no Brasil nos últimos 15 anos, e de certa forma, hoje exercem uma cobertura mais efetiva, mais intensiva, mais coerente e comprometida com a pauta socioambiental do que os veículos chamados tradicionais, com as exceções de praxe. Por exemplo, a cobertura que o G1 e a Rede Globo exercem na Amazônia é uma cobertura importante, extensa, detalhada e que merece registro e enaltecimento. Porque hoje, o grande veículo nacional de cobertura da região, não só a região amazônica, mas a região do Nordeste, do Sul, Centro-Oeste, é de fato a o G1 e os canais das afiliadas da Rede Globo, que formam esse pool de cobertura muito importante. Então, com essas exceções, não vejo de fato um avanço. Estou falando dos grandes jornais tradicionais: o que eu vejo são reportagens pontuais, são esforços, normalmente do repórter de campo, e não há um comprometimento da pauta diária. O tema socioambiental não entrou na pauta diária dos jornais como um compromisso de fato, de uma cobertura diária extensa, detalhada sobre a Amazônia. O que a gente vê são respiros momentâneos. Alguns fatos que ganham as manchetes e, de um modo geral, continua escassa a produção de reportagem sobre a Amazônia.
Segundo Rubens Valente, para trabalhar na Amazônia, um jornalista precisa, essencialmente, daquilo que todo jornalista precisa.
Curiosidade do jornalista, compromisso com a verdade factual, compromisso em ouvir todos os lados possíveis, trabalhar com fatos verificáveis que podem ser verificados por terceiros, trabalhar com documentos idôneos, trabalhar com testemunhas idôneas, que não sejam mentirosas. Esses são os pilares do jornalismo desde sempre, do jornalismo sério, comprometido, do jornalismo profissional. Embora esse termo “jornalismo profissional” caiba uma enorme discussão em torno dele.
Mas é claro que a cobertura de imprensa na região amazônica requer algumas habilidades especiais.
O que de fato, talvez, a Amazônia traga uma necessidade extra é que o jornalista tenha uma sensibilidade para o meio ambiente que o circunda. Porque ele é tão único, muitas vezes hostil, com temperaturas elevadíssimas, insetos ou qualquer coisa assim, que submete o repórter, o jornalista, a uma carga além de esforço físico. Quer dizer, ele tem que, de de uma certa forma, se afeiçoar a esse cenário. Porque é muito difícil se esperar um bom trabalho jornalístico se a pessoa está se queixando o tempo todo de onde ela está, do calor, ou dos insetos, das dificuldades, etc. Não é possível que ele consiga produzir algo bom, porque ele passa ali o dia se queixando, reclamando da vida. Então, o cenário amazônico requer uma afeiçoamento a essa realidade – para não chamar de amor, de dedicação a essas pautas. E também, ao cobrir os temas indígenas, obviamente, ele tem que ter um olhar diferenciado para essas populações marginalizadas, lesadas nos seus direitos, que são historicamente excluídas e que procuram exercer seus direitos em condições mais adversas. Então, o jornalista ele tem que ter esse olhar também, um olhar realista e sensível a esses fatos.
Nesta sexta-feira, 7 de junho de 2024, além de lembrarmos dos dois anos do assassinato de Bruno Pereira e Dom Phillips, comemoramos o Dia Nacional da Liberdade de Imprensa.
Essa data não pode ser encarada como a celebração de uma conquista garantida na nossa jovem democracia. Isso porque, embora a liberdade de imprensa esteja prevista na Constituição, ela é continuamente ofendida em diversas frentes.
Rubens Valente sabe bem disso.
Em 2014, o jornalista publicou o livro “Operação Banqueiro”, que trata dos bastidores da Operação Satiagraha, da Polícia Federal, que em 2008 prendeu o banqueiro Daniel Dantas, num dos mais midiáticos escândalos de corrupção do Brasil.
Num dos capítulos, Rubens descreveu a atuação do ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes no julgamento de um habeas corpus pedido pela defesa do banqueiro. O livro cita que o ministro não se considerou impedido para julgar o caso, apesar da proximidade de Gilmar Mendes com advogados envolvidos no processo.
O ministro processou o jornalista. Perdeu em primeira instância, mas ganhou nas instâncias seguintes. Após uma decisão no STF, relatada pelo ministro Alexandre de Moraes, Rubens foi condenado a pagar R$ 310 mil a Gilmar Mendes.
A Justiça também determinou que eventual reedição do livro teria que incluir, como direito de resposta, a sentença e o pedido inicial de Gilmar Mendes – o que adicionaria cerca de 200 páginas e tornaria economicamente inviável a reimpressão.
Entidades de defesa do jornalismo, como a Abraji, a ABI e a Fenaj afirmaram que a decisão do Supremo é um precedente perigoso, que configura censura.
Apesar dos custos, dos riscos e das represálias, Rubens Valente segue fazendo jornalismo com J maiúsculo – algo tão necessário na Amazônia e em todo o país.
Que jornalismo Amazônia precisa? É o mesmo jornalismo que os grandes centros urbanos precisam, que todos os biomas precisam. É um jornalismo comprometido com os fatos, um jornalismo intenso, um jornalismo dedicado ao seu objeto de notícia, que no caso é a Amazônia. Que seja, de fato, uma cobertura séria, longa, detalhada, extensa e que nós vemos raramente na chamada imprensa tradicional. Esse jornalismo requer pessoas em campo, escritórios abertos, equipes deslocadas. O trabalho de campo é extremamente necessário porque a Amazônia, essa imensidão… pode ser feito sim, mas é muito difícil a cobertura por telefone, por videoconferência… esses instrumentos podem ser grandes auxiliares da cobertura, mas eles não podem ser o foco. Não podem ser 99% do tempo assim, tem que ser o contrário. Tem que ter um grande investimento de campo e há muitos anos eu falo isso. E continuo falando.
Produção: Marcos Colón
Roteiro, locução, edição sonora: Filipe Andretta
Edição: Alice Palmeira
Revisão: Marcos Colón
Arte e montagem do site: Fabrício Vinhas
Direção: Marcos Colón