Victor Xamã: Rap amazônico entre rimas e pajelanças
O rapper amazonense Victor Xamã fala sobre ancestralidade urbana e o desafio de conquistar lugar como artista amazônida no Brasil


Victor Xamã, rapper e beatmaker manauara. Foto: Reprodução do Instagram/@victorxama/@dighett0.
A Amazônia é um mosaico complexo e diverso, berço de muitas realidades invisibilizadas. Na região, existem os povos que vivem às
margens dos rios, das florestas e também do concreto e asfalto. Sempre à margem, inclusive de direitos.
É dessa Amazônia marginal que vem o entrevistado do LatitudeCast dessa semana. Victor Xamã é rapper, produtor musical e compositor nascido em Manaus.
Ele se descreve como a dualidade verde e cinza, onde a vivência da grande metrópole industrial de Manaus se encontra com a imensidão verde densa e sagrada da floresta Amazônica. Um Xamã cujo a grande medicina é o ritmo e a poesia.
Seu nome artístico não poderia ser mais certeiro. Não é exagero dizer que o que ele faz não é música, mas sim pajelança.
A escrita entrou na sua vida ainda criança. Por sofrer de disfluência, popularmente conhecida como gagueira, Victor tinha dificuldades de se comunicar e viu na poesia um meio de ser entendido. O rap também está presente na vida dele desde cedo.
Até os trabalhos da escola o Xamã apresentava rimando.
Em 2015 ele lançou seu primeiro disco, o Janela, aclamado por crítica e público, mesmo caminho do segundo disco V. E. C. G., de 2017.
Em 2023, já morando em São Paulo, Victor Xamã lançou seu disco mais recente e também o mais bem sucedido. “Garcia” definitivamente colocou o artista manauara como um dos principais nomes do rap não só do norte, mas do Brasil, sendo divulgado e elogiado até pelo Emicida.
Xamã também tem parcerias com outros grandes artistas como Don L, Froid, Baco Exú do Blues, Luedji Luna e Karen Francis.
Sua voz grave de trovão traz rajadas de lírica, carregadas de uma sensibilidade bruta, que pulsa criatividade, poesia, raiva e resistência, cantando as realidades de uma Amazônia que o Brasil não olha.
Mas eu já falei demais. Melhor deixar o Xamã se apresentar.
Confira agora o episódio do LatitudeCast:
Victor Xamã: Para quem não me conhece, me chamo Victor Xamã, sou rapper e beatmaker de 29 anos, nascido em Manaus. Faz um tempo que tô morando em São Paulo, faz cinco anos que tô por aqui e vim com o intuito de amplificar a minha música mesmo.
Acaba que é um caminho que é amplificador, mas, ao mesmo tempo, é uma coisa que artistas que não são desse eixo, desse polo cultural do Brasil, têm que fazer esse movimento retirante. Isso é bem resumido, assim, eu nem falei muito quem eu sou, falei mais sobre o meu trabalho. Mas eu sou um cara tranquilo, gosto de sair, gosto de tomar um chope, gosto de uma boa conversa.
Amazônia Latitude: Quando a gente fala em Amazônia, normalmente, principalmente as pessoas que são de fora, a primeira imagem que vem à cabeça é floresta, indígenas. Mas também existe uma Amazônia urbana que é pouquíssimo vista, pouquíssimo lembrada. E o rap que é feito aqui justamente emerge dessa Amazônia. Eu queria que tu falasse um pouco do papel dessa Manaus urbana, dessa Manaus do concreto, que é um lugar que tem, infelizmente, muita miséria, muita fome, muita violência, muitos marcadores sociais que limitam e sufocam muitas pessoas de periferia. Como é que essa cidade, esse cinza da cidade, e o verde da floresta emergem no teu trabalho?
Então, João, eu acho que o rap no Norte não é muito diferente do rap do Brasil, pelo fato de que existem muitos estilos, entendeu? Hoje em dia, tem gente fazendo grime, tem gente fazendo trio, tem gente fazendo trap, tem gente fazendo boombap, tem gente fazendo rap melódico.
Mas, claro, esse tempero… eu acredito que a cidade reflete no indivíduo. Em Manaus, ou é oito ou é oitenta. E quando eu falo isso, falo tanto em tranquilidade — você tá numa área mais de paz, onde consegue estar perto da natureza — mas também tem aquela questão de ser uma visão perigosa também, né, mano?
Por conta de ser uma rota do narcotráfico, não é novidade pra ninguém que muitas coisas acabam passando por Manaus pra depois serem transportadas pro Brasil inteiro. Então, eu acho que essa mesma ideia de estar no coração da floresta amazônica e, ao mesmo tempo, ter o polo industrial ali…
A miséria, a desigualdade social — isso tudo vai refletindo não somente no rap, mano. Acho que na literatura, em tudo, em todos os quesitos que envolvem a arte. O rap entra como mais um braço desse mundo vasto e amplo que é a arte feita na nossa cidade.
E eu acho que é isso mesmo. Acaba que colocam muitos artistas do Norte do Brasil em um estereótipo, numa imagem que as pessoas querem enxergar, porque foi como contaram a nossa região em filmes e tal. E claro que é também, mano…
Mas é muito mais complexo que isso, sabe? É o local onde a mídia quer colocar os povos originais, como se fosse uma coisa que não tivesse um avanço tecnológico ancestral.
Eu acredito que não é muito previsível, mano.
Eles querem o indígena parado no tempo ainda, né?
Exatamente, mano. Eu acredito que hoje em dia é muito imprevisível, e eu gosto disso, sabe? Então eu tento trazer esse tempero pro meu rap. É claro que esse sotaque, esse jeito, ao mesmo tempo que aproxima, porque a gente acaba vivendo um momento em que a Amazônia tá na moda.
Mas nem sempre foi assim, mano. Nem sempre foi assim. Às vezes eu chegava em umas rodas de rap fora de Manaus, com o meu sotaque, com a minha história, com a minha bagagem, e as pessoas levavam isso como uma coisa meio cômica, sabe? Hoje já subverteu isso, subverteu com muita luta, com muita garra, mano.
Acho que tem que ter ideia de que esse modismo também pode passar. E o que resta é a gente ter esse nosso acervo intelectual mesmo, que é muito conteúdo de qualidade. Quando eu lancei meu primeiro disco em 2015, mano, eu não imaginava ver o Terranios em séries, em filme, em desfile de moda em Paris, entendeu?
Eu acho que a gente vive um momento de vozes políticas, entendeu? De militância organizada, e gente, querendo ou não, enfim, conseguindo fazer uma grana também, mano, porque isso é muito importante, sabe?
Eu acho que vai chamando pessoas e pessoas, então eu acredito que o momento que a gente está vivendo é histórico. E é histórico pelo fato de que o mundo está com várias problemáticas, e o nosso período de ascensão criativa está num momento totalmente caótico.
É engraçado, tu tocaste em muitos pontos fundamentais, até fiquei admirado com o teu poder de concisão, de síntese, de temas tão complexos. Tudo isso é muito complexo. Tu citaste um termo muito interessante, que são essas tecnologias ancestrais. Agora, com a gente já imerso nessa parte mais urbana, falando da parte urbana de Manaus, é como se toda aquela vivência ancestral, diante da colonização e tudo mais, fosse completamente massacrada, mas não conseguiram matar toda essa força, toda essa essência. Toda essa produção cultural, artística, que faz parte da essência amazônica, indígena.
E, João, tem uma parada que eu acho que as pessoas não conversam muito, que é o ser invisível, tá ligado? Eu acho que principalmente para o pessoal da nossa região, muita gente já estava aqui, ou vieram pessoas no tempo áureo da borracha, e acabou rolando essa mistura que gerou tudo, nesse sangue, nesse suor e nesse gozo, tudo se misturando no mesmo lugar.
Eu acredito que, por exemplo, a minha avó era de Benjamin Constant, a minha falecida avó. Meu vô era colombiano, de Bucaramanga. Tem uma parada, mano, que a minha avó nunca gostou de conversar sobre o passado dela.
Eu acho que hoje em dia a gente fala muito sobre essa questão de ancestralidade, mas existe uma grande parcela da sociedade que não tem nem ideia disso, porque às vezes é um passado tão sofrido, mano. A minha avó teve 12 filhos.
Eles moraram anos e anos numa casa de dois cômodos com 14 pessoas. Depois algumas pessoas da minha família ascenderam nessa parte financeira, conseguiram um emprego, uma coisa mais estável. É uma coisa surreal, mas mesmo assim, quando eu ia nos aniversários da minha avó, eu sempre percebia essa tristeza de tocar no passado.
Eu até perdi o fio da meada um pouco. Por que tô falando isso? Acho que é esse ponto da ancestralidade, principalmente na região Norte, mano. Tem pessoas que têm esse receio, esse medo.
Que têm essa lembrança triste. Então eu acho que o nosso papel mesmo é resgatar isso com força, com um grito, com uma música, com uma arte. E não falo em resgate só trazendo discurso feliz, não, mano.
É de todas as maneiras possíveis.
É justamente sobre isso, sobre a questão da ancestralidade, que eu falava dessa Amazônia idílica, floresta, pajelança, xamanismo. Tentaram impor outro sistema que não tem nada a ver com o território, social, político, cultural ou geográfico. Mas isso se manteve entre os escombros dessa sociedade colapsada, emergindo como uma planta no concreto. Continuou se fazendo.
Acho que tu és a maior prova disso.
Eu não sabia dessa tua questão familiar, que mostra a Amazônia diversa, toda vez num corpo só, porque tu também és um corpo político. Imagino que, quando tu te apresentas em outros estados, que não o Norte, provavelmente estranham o teu corpo, tipo um homem negro.
Por incrível que pareça, as pessoas acham que não existem negros na Amazônia, o que é outra invisibilidade, uma identidade silenciada que tentam apagar. Mas, falando das tecnologias, parece que a música urbana e a arte continuam sendo um ponto de resistência.
Ouvindo o teu trabalho, como o disco “Janela“, de 2015, dá para ver que é um grito, desabafando tudo no papel, e na produção, com beats e cuidado musical impressionante. Gosto muito desse teu primeiro disco. Tu já estreaste descendo a letra, afirmando e reafirmando. Tu não te colocaste em vitimismo, pelo contrário, chegaste dizendo que és foda e tens grandes conquistas pela frente, mesmo que o sistema tente derrubar.
No segundo disco, mantiveste o pulso, talvez ainda mais agressivo. O terceiro disco parece dizer “cheguei lá”. É incrível como tu traças essa narrativa, sempre consciente do lugar onde quer chegar. A busca parece estar sempre presente no teu trabalho. Nunca deixaste ninguém te acompanhar nessa caminhada.
Teve uma entrevista que tu deste, que achei incrível, onde falas que tentas entender teus pensamentos como uma força da natureza. Acho genial tu te perceber como parte de um ecossistema, e que o que tu emanas é fruto disso. Queria que tu falasses mais sobre essas vivências e como elas se refletem no teu trabalho.
Às vezes eu uso muito desse artifício, dessa dualidade, dessa dicotomia que é ser de Manaus, essa tranquilidade e esse caos tudo no mesmo lugar. Em Garcia, eu tentei fazer algo em que em nenhum momento eu falo explicitamente a palavra Manaus. Minto, eu falo só uma vez, na introdução.
Eu fiz isso como um exercício, um exercício de como falar sem verbalizar, entendeu, sem falar a palavra, mas que fique na intenção, na entonação. Eu fiz isso porque na poesia isso é lugar comum, e desde sempre eu venho falando sobre isso. Então quis dar um drible, um exercício de ir mudando um pouco a direção, sem mudar a direção.
Mas eu acho que é isso, mano. O rap é muito abrangente, muito abrangente no mundo. A cultura hip-hop que ela se tornou, eu tive grandes professores como DJ MC Fino, Igor Muniz, S Preto. Quando eu era criança, eu via esses caras cantando Manaus em ritmo e poesia. Isso me motivou muito, ver o próprio Jander cantando as músicas dele, que era uma pegada regional raiz mesmo.
Então eu fui vendo, aprendendo e colocando um pouco de mim nisso, traduzindo tudo isso.
Outra coisa interessante que tu falaste sobre a Amazônia estar na moda, com todos os olhos voltados pra cá. Acho curioso esse processo, porque tu disseste que a tecnologia ajudou muito nós aqui na região, dando acessos que antes eram impossíveis.
Imagina gravar um disco no teu quarto no início dos anos 2000, impensável. A tecnologia avançou tanto que essas ferramentas chegaram às mãos dos moleques da periferia, de pessoas com muita ideia e criatividade, mas sem onde expressar tudo isso. Chegou na mão dessa galera justamente num tempo em que o mundo parece estar em colapso.
Como tu imaginas o futuro do teu trabalho? Pra onde vai agora? Quais são as tendências culturais, criativas e artísticas da Amazônia, essa Amazônia agora observada por todo mundo? Como tu enxergas todo esse processo cultural?
A Amazônia é um fenômeno cultural e pop, e tu estás na batalha há mais de uma década. Agora, construindo um trabalho desde antes desse hype, tu estás numa posição diferente, o que imagino traga reflexões sobre a cena, esse estado e a forma de produzir cultura aqui. Como tu vês esses fenômenos recentes?
São tantas coisas, mano, são tantos caminhos. Eu fico pensando que, ao mesmo tempo que isso é positivo pra caramba, a gente sabe, acho que você, como artista, entende também, o dinheiro não gira da maneira que deveria girar. Isso é um ponto principal, na minha opinião.
Eu acho que em questão de a gente ter um holofote, uma voz, tudo isso é muito positivo, mas ainda falta a valorização para enxergar a gente como artista a nível nacional, entendeu?
Não com essa alcunha de artista regional. Não que eu ache isso ruim, tá, porra, acho isso do caralho até, o artista da região e tal, mas o que transformaram essas duas palavras em seguida é um negócio que significa escassez. Ao mesmo tempo, acho que a gente tá tendo essa escalada, né? São tópicos sensíveis que tão chamando pessoas que têm propriedade pra falar da parada, pra chegar lá num bagulho meio hypado e dar o discurso.
A pessoa chega e fala, mas na hora de ser remunerada, ela não é remunerada como o ator global, entendeu? Não sei se tô me fazendo entender, mas acho que sim. É positivo que a gente tá nesse caminho onde tem visibilidade, mas a gente precisa de ferramentas além da visibilidade.
E quando falo dessas ferramentas, é o apoio dos nossos mesmo, mano. Teve uma coisa que eu ouvi muito quando cantava em Manaus: quando eu descia do palco, as pessoas que são daí falavam pra mim, porra, teu som é tão bom que nem parece que é daqui. Acho que o problema é muito grave, mano.
Ele é grave mesmo. O problema tá na raiz, na raiz histórica de falta de valorização. Hoje fico feliz demais de ver que até artistas do rap tão conversando com artistas do boi e pessoas que tão atuando em filme tão conversando com estilistas.
Recentemente participei do desfile do Seu Dori, que foi na Casa dos Criadores, junto com a Manauara Clandestina. Esse tipo de mistura doida é positivo, mano. Eu acho positivo.
Mas acho que, além do modismo e dessa cadeira pra gente sentar e ser visto, a gente precisa de algo pra conseguir fazer projetos, mano. Fazer projetos e se organizar mais ainda.
Essa mentalidade de indústria que falo é um ecossistema cultural e econômico. Tem profissionais: a galera do estilo, músicos, produção, o cara da iluminação, o pessoal da limpeza. São muitas pessoas envolvidas, mas esse setor não tem interesse em se desenvolver. E seria uma excelente alternativa econômica, enquanto buscamos desenvolvimento sustentável.
Cultura, no Amazonas, um estado riquíssimo nesse sentido, não só mineralmente. Infelizmente, a mentalidade extrativista é frequente, histórica, e ainda é imposta à Amazônia, inclusive culturalmente. Como artista, me incomoda muito a pirataria cultural, que já existe há tempo, e as apropriações estéticas e discursos do Norte e da Amazônia.
A Amazônia ficou em voga, e a gente lutou para que olhassem para cá, questionando a invisibilidade. Mas agora que olham, fico meio assim, “por favor, esqueçam a Amazônia”, porque as visões, equívocos e propostas de desenvolvimento para a região são complicados. Estamos desmobilizados, sem saber como nos defender disso. Tu tens alguma resposta para isso?
O que acontece é que grandes produtores culturais vão pra Amazônia pra fazer dinheiro. Pra fazer dinheiro em cima de uma pauta. Assim como tem pessoas que são bem intencionadas pra caramba, o que é ótimo, às vezes. Principalmente falando de Manaus, eu penso que a gente não tem nenhum festival independente, grande, uma coisa que mobilize a cidade toda.
Quando vejo que tem algumas coisas que acontecem, como o Bailinn, que foi um evento do qual participei, uma iniciativa do pessoal investindo do próprio bolso, o pessoal se juntou pra fazer uma parada. Fico vendo essas coisas, mano, é muito arriscado. A gente vem de um lugar de escassez também. Quando digo escassez, espero que tu me entenda, não é escassez de criatividade, mas de possibilidade mesmo.
Sempre que converso com amigos, falo essa frase: a escassez faz a manutenção do ódio. Então pensa, mano, aonde falta, uma porrada de artistas, pensadores, poetas, acaba que a gente vai se matando entre si. Quando falo em calor, falo disso também, artistas brigando entre si, cegos, sem perceber qual é o real inimigo. Fico observando isso. Acho que tem que ter uma organização, que até já está acontecendo, mas a grana precisa girar, mano.
Acho que esse é o calcanhar de Aquiles da parada. A gente pode estar organizado, mas sem grana não consegue lutar de igual pra igual. É isso que tenho percebido. E por conta disso, dessa falta de perspectiva e de longevidade, quando a gente pensa num artista que se destaca em Manaus, ele tem até um teto. Ele vai em várias casas de show, consegue ter uma fanbase, mas chega um momento em que não consegue fazer nada além disso, porque o próprio sistema em volta da parada, a organização em volta da parada, impede que esse artista ultrapasse essa linha invisível.
Aí geralmente os artistas fazem o movimento de sair de Manaus. Acho que a gente tá nesse círculo vicioso. E não é somente Manaus, não. Acho que todos os locais que estão na periferia do Brasil, todos os extremos, fazem esse movimento de visibilidade há muitas décadas.
Numa música tua, tu falas que aqui é a cidade onde os heróis morrem de tédio. É forte, porque mostra que alguém pode ser um grande compositor, músico, poeta, pensador, mas acaba esbarrando num teto, como tu disseste. E isso é triste.
Manaus, como tu falas em outra faixa sobre o Brasil ser um liquidificador de sonhos, também funciona assim. Mas tu nunca desististe. Já vi muita gente ficando pelo caminho, dizendo que não dá mais, porque realmente é difícil. Essa escassez tem a ver com precarização. É um ofício insalubre, e muitas vezes a gente paga pra conseguir trabalhar.
Mesmo assim, tu seguiste firme, como se soubesses que ia dar certo. Isso é inspirador. No segundo disco, tu falas do preço de sonhar alto, e no último repetes a ideia: sonha esse sonho até que ele te adoeça. Tu pareces ser um artista dedicado, que estuda, aprimora técnica, canto, produção. O que tu buscas com a tua arte? Já encontraste?
Não, eu ainda não encontrei, e acho que o caminho criativo é infinito. A gente tem uma vida finita, então a criatividade é esse exercício constante. Tento levar a música como a primeira opção da minha vida. Seria mentira dizer que todo dia eu acordo com a maior certeza do mundo, mas eu tenho certeza que vou sempre trabalhar com algo ligado à arte, e vou sempre cantar também. A música apareceu pra mim como uma forma de me comunicar.
Tenho essa percepção de multiartista. Além de fazer minhas músicas, já compus pra outros artistas, trabalho com produção de áudio, sou formado em design gráfico, e ultimamente tenho gostado muito da parte de render, de visualização arquitetônica. Era um hobby que virou trampo. Sempre dou dicas pra amigos artistas que estão muito focados em uma só coisa. Digo: “mano, amplia esse olhar”. Não sei se tu já viu aquele filme Soul, da Disney, no qual o cara tá no mar procurando o oceano. Tento direcionar minha visão artística pra esse lugar mais amplo, de multiartista mesmo.
Claro que minha área de destaque hoje é a música, sem dúvida. Mas eu gosto de tudo que envolve criatividade: pintar, desenhar, inventar. É algo que me motiva desde criança. Mas, irmão, o artista que fala que nunca pensou em desistir tá mentindo do fundo do coração. A gente lida com frustração e bajulação na mesma intensidade. Tu sobe no palco com todo mundo gritando teu nome, e depois chega em casa com conta atrasada.
Isso, emocionalmente, nas nossas cabeças, é desolador. Não é só a questão financeira, mas o desgaste emocional de todo o processo. Todo o esforço pra fazer o teu trampo dar certo, todas as renúncias. Acho que tu sempre colocaste de forma muito brutal a realidade do processo criativo. Tu não romantizas, isso é claro nos teus trabalhos. Não sei se tu já viste um filme chamado Frank, já viste aquele do cara com uma cabeçona?
Não, eu não cheguei a ver o filme eu cheguei a ver um trailer até.
É um filme sobre o processo criativo. Eles vão gravar um disco numa casa isolada, e o que seria quatro meses vira mais de um ano. Mostra os lados cruéis da criação, sem romantizar. Criar já exige muito, e ainda tem o esforço de fazer o trabalho chegar. Hoje o artista precisa ser tudo: social media, fotógrafo, designer, produtor. Quem tem grana consegue ajuda, mas no corre independente é sobrecarga pura. E isso esfria a criação, vira algo burocrático, o que é triste.
Sobre tua vivência no Sudeste, como tu sentes a recepção ao teu trabalho? Tu achas que consegue romper essas barreiras xenofóbicas? É comum tirarem sarro do nosso sotaque, jeito de falar, de se vestir, da nossa cultura. Sempre num lugar de estereótipo.
Quando fui a São Paulo, me senti mal. Fiquei na Vila Madalena e dava pra ver os olhares, o estranhamento com meu jeito de falar. Foi violento. E pra ti, como é estar nesse lugar, longe de casa, e seguir criando, conquistando espaço no braço?
Às vezes eu uso muito desse artifício, dessa dualidade, dessa dicotomia que é ser de Manaus, essa tranquilidade e esse caos tudo no mesmo lugar. Em Garcia, eu tentei fazer algo em que em nenhum momento eu falo explicitamente a palavra Manaus. Minto, eu falo só uma vez, na introdução.
Tô morando em São Paulo faz cinco anos. Vim com a minha esposa, a gente chegou aqui logo na pandemia. Fiz um show e aí fechou tudo. Lembro que tava conversando com a Maria e disse: cara, a gente vai passar uns tempos difíceis aqui, acho que seria melhor voltar pra Manaus. Aí ela falou: Vitor, eu saí da casa dos meus pais, e a partir do momento que saí de lá, agora a gente só anda pra frente. Então eu disse: vamos nessa.
Passei poucas e boas, que nem cabem numa entrevista. Já me vi muito nesse lugar de ser uma cota nortista. Às vezes me contratavam por umas coisas sem nem ter escutado minha música. Mas eu fui pegando tudo no braço mesmo, com muita qualidade sonora, qualidade de clipe, entregando algo que era impossível não perceber.
Tem também um outro lado. As pessoas de São Paulo estão cansadas das coisas de São Paulo. Às vezes é o mesmo sotaque, a mesma narrativa, a mesma história. Então eu tenho pra mim que, não generalizando, os artistas que mais conseguem destaque quando vêm pra São Paulo são os que não nasceram aqui.
Claro que todo começo é difícil. As pessoas demoravam pra entender o que eu queria passar, o que eu tava cantando. Elas sentiam, mas tinha uma barreira, uma barreira de sensibilidade. E eu fui combatendo isso com trabalho braçal, fazendo show, melhorando, fazendo aula de canto, entregando uns clipes fodas. Mesmo com orçamento baixo, uns clipes que você olha e fala: isso é cinema.
Foi isso. Peguei essa indiferença que eu percebia e fui colocando um pouco de amor e um pouquinho de ódio nisso.
Impressionante. Então foi aí que nasceu Garcia? Teu último disco foi feito em São Paulo?
Então, sim, Garcia nasceu em São Paulo e traz essa questão do disco ser a história da minha rima e da minha vida. Eu conto algumas coisas mais pessoais e, ao mesmo tempo, falo sobre o caminho que fiz pra chegar até aqui. Acredito que Garcia foi uma das primeiras vezes que falei de mim em primeira pessoa. Antes, eu tinha um certo receio, não me sentia bem me ouvindo falar de mim.
Nos trabalhos anteriores, às vezes eu não tinha a quem recorrer naquele momento. Acho que Garcia foi a primeira vez que tive autoestima e audácia de falar de mim com um lugar de ego, que acho super benéfico, principalmente no mundo do rap. Existe a batalha de rap, a batalha de ego, e um estilo específico chamado ego trip, em que você fala de você, de como é foda, como é bom, como fez aquilo.
Botou no bolso o Freud e o Baco, né?
Eu tinha uma certa dificuldade com isso, e em Garcia eu chutei o balde mesmo. Pensei “faz sentido”.
Tu sempre trouxeste um cuidado especial com tudo, né? Não só a lírica, que já é forte, nem só a métrica, que também é impactante, mas a musicalidade toda, como tudo soa melodicamente. Acho legal isso em relação ao teu nome, de Xamã, porque parece que tu fazes uma pajelança, um xamanismo com o teu trabalho. Como, no teu processo criativo, se juntam esses dois universos: essa Amazônia esotérica, xamânica, da floresta, com o cinza urbano, o asfalto, os computadores e máquinas?
Então, antes eu assinava minhas músicas como Garcia. Quando lancei “Garcia”, era muito essa volta pro passado pra falar do futuro. Tem o significado de ser meu sobrenome, o sobrenome que herdei da minha mãe, que estampa a capa. São várias tramas que se misturam pro conceito e a temática do trabalho.
Escolhi trocar de nome porque era o meu nome que eu usava nas batalhas, e eu achava meio comum assinar minhas músicas sendo um MC com meu sobrenome. Queria algo mais profundo que isso. Pensei muito na palavra xamã, como se fosse a medicina da palavra, como enxergar no escuro algo inexistente, uma combinação de palavras que traz uma sensação.
Fui sentindo isso, misturar o urbano com o ancestral, a tecnologia com o rudimentar. Esse foi o conceito que tive. Tento trazer essa Amazônia, minha bagagem, mas de uma forma que não seja aquela fórmula caricata. Quero trazer do meu jeito a experiência que tive, o que vivenciei.
São várias Amazônias dentro de uma grande Amazônia, várias experiências. Não tenho como resumir todas, só conto a minha. Fico feliz demais quando as pessoas escutam e se veem nisso, e isso acaba agregando. Fico muito feliz de perder o controle da minha música e ela atingir as pessoas de forma positiva.
Tu fazes música para ti ou para os outros?
Cara, eu acho que é um pouco dos dois, sabia?
Hoje é um pouco dos dois sim, porque eu quero vender a minha música, mas quero vender algo meu. Tem uma frase que o Emicida fala que eu acho muito massa. Ele fala: “odeio vender algo que é tão meu, mas se for pra alguém ganhar dinheiro com isso, então que seja eu”.
Maravilha! Tens alguma última coisa que gostarias de falar? Uma mensagem final?
Tô fazendo o disco agora que vai ser “Garcia, o último ato“. Também tô fazendo um EP, que ainda não tem nome, em parceria com o produtor Willsbife. Estou trabalhando colaborativamente com o Xamã. A gente tá fazendo um disco juntos, que se chama “Aquele Que Enxerga no Escuro”. Já temos umas 12 faixas, estamos na seleção das músicas para terminar esse trabalho colaborativo.
Previsão de lançamento? Ainda não, mas a gente tá fazendo com muito carinho. Foi um convite que recebi, achei inusitado pra caramba, mas por incrível que pareça tá ficando algo muito bom. Eu tenho meu lado mais poético, e o Xamã tem a forma dele de fazer poesia, mais ligada à rua, à vivência de batalha de rima. A forma como estamos fazendo isso no disco tá ficando muito interessante. Acho que o pessoal vai gostar dessa mistura doida.
Era esse recado que eu queria dar: ainda vou lançar muitos trabalhos esse ano. Pra quem quiser escutar meu trabalho mais recente, que é “Armadilha”, com participação do Pecaos.
Pra quem não me conhece, muito prazer e me siga nas redes sociais.
Roteiro e locução: João Felipe Serrão
Edição sonora: João Nilo
Montagem de página e acabamento: Alice Palmeira
Revisão: Juliana Carvalho
Identidade visual: Fabricio Vinhas
Direção geral: Marcos Colón