Amazônia em luta: movimentos pedem justiça no caso das quebradeiras de coco assassinadas no Pará

O Estado revive o luto brutal da violência agrária e a floresta ecoa o grito silenciado de duas de suas guardiãs.

Antônia Ferreira dos Santos (53) e Marly Viana Barroso (71) foram brutalmente assassinadas no Pará, em um crime que movimentos sociais denunciam ser um "recado escrito com sangue" contra a luta pelo livre acesso aos babaçuais. Imagem: Fabrício Vinhas/Amazônia Latitude.
Antônia Ferreira dos Santos (53) e Marly Viana Barroso (71) foram brutalmente assassinadas no Pará, em um crime que movimentos sociais denunciam ser um "recado escrito com sangue" contra a luta pelo livre acesso aos babaçuais. Imagem: Fabrício Vinhas/Amazônia Latitude.
Antônia Ferreira dos Santos (53) e Marly Viana Barroso (71) foram brutalmente assassinadas no Pará, em um crime que movimentos sociais denunciam ser um "recado escrito com sangue" contra a luta pelo livre acesso aos babaçuais. Imagem: Fabrício Vinhas/Amazônia Latitude.

Antônia Ferreira dos Santos (53) e Marly Viana Barroso (71) foram brutalmente assassinadas no Pará, em um crime que movimentos sociais
denunciam ser um “recado escrito com sangue” contra a luta pelo livre acesso aos babaçuais. Imagem: Fabrício Vinhas/Amazônia Latitude.

A dor da perda de Antônia Ferreira dos Santos (53) e Marly Viana Barroso (71), quebradeiras de coco babaçu brutalmente assassinadas em Novo Repartimento (PA) no começo de novembro, transformou-se em combustível para a luta e em um grande ponto de controvérsia. Após a prisão de um suspeito, a Polícia Civil de Tucuruí considerou o caso concluído, mas movimentos sociais e defensores de direitos humanos se recusam a aceitar o desfecho declarado pela corporação.

O delegado e superintendente Erivaldo Campelo declarou o caso como encerrado com a detenção e confissão de um suspeito. Segundo o relato à imprensa local, a Polícia Civil considerou o caso concluído após o jovem, de 20 anos, assumir a autoria do crime. Ele teria agido sob efeito de álcool, encontrando as quebradeiras, tomando o facão — instrumento de trabalho delas — e cometendo a agressão seguida de violência sexual e morte.

Antônia e Marly saíram para o trabalho que garantia o sustento de suas famílias, o ofício de quebrar o coco babaçu, símbolo do modo de vida extrativista e da defesa da floresta. Elas foram localizadas por seus familiares, no dia 03 de novembro, sem vida, ao lado dos frutos que haviam colhido. Os indícios de facadas, um ferimento de degola em uma delas e a suspeita de violência sexual atestam a crueldade e o ódio desmedido que motivaram o ato.

No entanto, o Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB) e organizações parceiras questionam a rapidez e a superficialidade da apuração. Para eles, é contraditório que uma pessoa sem histórico criminal prévio cometa um crime de tamanha barbaridade sob as condições alegadas, indicando que o episódio foi tratado como um fato isolado para encobrir uma motivação de fundo mais grave.

Um recado escrito com sangue

A cerca e a placa em frente ao babaçual simbolizam a guerra territorial e a afronta direta à luta das quebradeiras que defendem o direito de acesso ao recurso natural para subsistência. Foto: Hélia Costa.

A cerca e a placa simbolizam a guerra territorial e a afronta à luta das quebradeiras que defendem o direito de acesso ao recurso natural. Foto: Hélia Costa.

O crime expõe uma questão mais profunda que atravessa a história local: a vulnerabilidade das comunidades tradicionais diante de um cenário de grilagem, ganância e impunidade. A violência, que cresce de forma alarmante, revela um panorama de conflitos exacerbados por interesses econômicos e ambientais. De acordo com o último relatório Conflitos no Campo Brasil, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Pará foi o estado com o maior número de assassinatos registrados em 2024, totalizando 94 mortes nos últimos 10 anos.

Para o MIQCB e integrantes de grupos de direitos humanos, o fato não pode ser desvinculado de uma guerra territorial. O assassinato das duas mulheres é um recado intimidatório, escrito com sangue, e uma afronta direta à luta das quebradeiras que defendem o direito de acessar e usar os babaçuais que fazendeiros e grandes empresários insistem em cercar e privatizar.

A denúncia evidencia a fragilidade das comunidades tradicionais frente aos interesses econômicos descontrolados e à ausência de uma ação efetiva por parte das instituições responsáveis, tornando-se um alerta para a necessidade de políticas públicas que garantam a proteção e os direitos dessas populações.

A velocidade da prisão do suspeito levanta dúvidas entre integrantes de movimentos sociais e defensores de direitos humanos, que cobram mais transparência sobre a investigação e o andamento do caso. Esse desfecho, segundo eles, pode ser marcado pela impunidade de poderosos, atuando como um incentivo a novos atos de violência, perpetuando o medo e a insegurança para todos aqueles que se atrevem a defender seus direitos e territórios.

A versão considerada ‘simples’ levanta desconfiança, especialmente em quem conhece a realidade da região, marcada por disputas territoriais. Eran Paulo Rodrigues, Assessor Jurídico do MIQCB, sintetiza o sentimento de preocupação: “Foi muito repentino, está muito fácil. Sabendo como é a nossa região, uma região de conflito agrário, esse desfecho simplório é muito estranho”.

O Ministério Público, até o momento da publicação desta reportagem, não havia se manifestado publicamente sobre o andamento do inquérito policial ou sobre a intenção de aprofundar as investigações para além da autoria material do crime.

O “Babaçu Livre”

A exigência do movimento tem base legal na “Lei do Babaçu Livre“, uma legislação aprovada em âmbito municipal e estadual na região da “Mata dos Cocais” (que abrange o Pará, Maranhão, Piauí e Tocantins). A normativa representa uma das mais importantes conquistas do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB), sendo uma legislação de caráter fundamentalmente socioambiental, garantindo o livre acesso das comunidades agroextrativistas aos babaçuais, mesmo que estes se encontrem em propriedades privadas, desde que explorados em regime familiar e comunitário. Entretanto, o município de Novo Repartimento (PA) não está contemplado por essa legislação, expondo a ausência de proteção legal no local do crime.

Cachos de coco babaçu, a "Mãe Palmeira". O fruto é a principal fonte de renda e sustento das quebradeiras, estando no centro da disputa territorial contra o agronegócio. Foto: Joseph Bruno.

Cachos de coco babaçu. O fruto é a principal fonte de renda e sustento das quebradeiras, estando no centro da disputa territorial contra o agronegócio. Foto: Joseph Bruno.

A lei visa proteger o modo de vida tradicional das quebradeiras, para as quais o babaçu é a principal fonte de renda e sustento, sendo chamado de “Mãe Palmeira” por sua utilidade integral (do azeite à palha). Assim, ao proibir a derrubada, queima ou uso predatório das palmeiras, estabelece uma barreira legal contra o avanço do agronegócio — sobretudo a pecuária extensiva e a monocultura de commodities como a soja e eucalipto —, que frequentemente tentam cercar e destruir os babaçuais para tomar posse da terra. 

A resistência dos grandes proprietários em cumpri-la é a principal causa dos conflitos agrários e da perseguição sofrida pela categoria. O ponto de intensa controvérsia reside na sua efetivação e fiscalização. Ela coloca o direito social e cultural das comunidades tradicionais em confronto direto com o direito à propriedade privada absoluta. O crime contra Antônia e Marly, mortas ao lado dos frutos que lhes davam vida, é interpretado como uma tentativa de silenciar essa resistência. 

Violência, agronegócio e megaobras

A tragédia se insere no quadro mais complexo da luta pelas terras no Pará, um estado historicamente marcado por altos índices de violência no campo. Novo Repartimento é um município que cresceu sob a égide da expansão agropecuária desordenada e da extração mineral, um caldeirão de interesses que colidem diretamente com a subsistência das comunidades extrativistas.

Segundo Polly Soares, membro da Direção Estadual do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e articuladora no Instituto Zé Cláudio e Maria, “temos vivido uma sequência de ataques cada vez mais intensos aqui na Amazônia. Essa violência é promovida pelo agronegócio, pelos grandes projetos, além do garimpo ilegal, que vem destruindo o habitat e ameaçando as populações locais”.

Polly Soares, membro da Direção Estadual do MST e articuladora do Instituto Zé Cláudio e Maria, critica a violência promovida pelo agronegócio e a superficialidade da investigação. Foto: Acervo pessoal.

Polly Soares, membro da Direção Estadual do MST e articuladora do Instituto Zé Cláudio e Maria, critica a violência promovida pelo agronegócio e a superficialidade da investigação. Foto: Acervo pessoal.

A área onde as quebradeiras foram mortas sofre com diversos impactos socioambientais e econômicos. Polli Soares detalha que, além do agronegócio, a região convive com o projeto da Hidrovia Araguaia-Tocantins, que envolve a derrocagem do “Pedral do Lourenção”. Este é um projeto de infraestrutura que causa um impacto direto na vida das comunidades ribeirinhas que vivem no entorno do rio.

O Pedral do Lourenço e a logística do conflito

O Pedral do Lourenço é uma formação rochosa natural no leito do rio Tocantins (entre Marabá e Itupiranga). Durante o período de estiagem, quando o nível das águas do rio diminui, as pedras ficam expostas, dificultando a navegação de grandes embarcações nesse trecho. 

Embora o governo do Pará tenha obtido licença ambiental para o derrocamento (remoção das rochas) como parte da Hidrovia Araguaia-Tocantins — visando escoar a produção agroindustrial —, a obra gera profunda preocupação. O pedral é um importante berçário para peixes, e sua remoção ameaça diretamente o modo de vida das populações tradicionais, interferindo em recursos hídricos essenciais.

As lideranças locais alertam que essa prática de cercar terras públicas, desmatar para a criação de gado e negar o acesso tradicional a recursos naturais como o babaçu é o motor da ameaça constante que paira sobre essas comunidades. Os riscos às populações tradicionais apagam seu modo de vida ancestral e agravam a crise social já instalada na região. Diante disso, o crime contra Antônia e Marly não pode ser desvinculado dessa guerra territorial que coloca a subsistência de um lado contrário ao latifúndio.

Pedral do Lourenço. Foto: Portal Gedaia Amazônia / Reprodução.

Pedral do Lourenço. Foto: Portal Gedaia Amazônia / Reprodução.

O ciclo da impunidade

Décadas de impunidade consolidaram um ambiente onde a coerção se tornou a principal ferramenta para a resolução de conflitos fundiários. O problema mais grave que as autoridades de segurança devem superar é o ciclo de impunidade no campo. Exemplo claro do que acontece na área em que as quebradeiras de coco foram assassinadas,  marcada por diversos impactos socioambientais e econômicos, agravados pela intensa presença do agronegócio e grandes projetos de infraestrutura.

Historicamente, a investigação raramente alcança os mandantes — aqueles que ordenam e financiam crimes com interesses econômicos claros. A investigação, muitas vezes, se concentra apenas no executor material, ignorando que o suspeito pode ser o elo mais fraco em uma cadeia criminosa. Ao prender apenas o executor, o sistema tende a considerar o caso “encerrado” ou “solucionado”, perpetuando um plano maior de retaliação e intimidação.

A Polícia Civil, ao investigar, tem a responsabilidade de olhar além do agressor individual e apurar se há mandantes ou se a motivação é uma retaliação calculada por aqueles que se sentem incomodados pela persistência e resistência das quebradeiras.

A morte de Antônia e Marly é uma prova da falência do Estado em garantir a segurança de quem está na linha de frente da conservação, um elo fraco na cadeia de governança ambiental. Embora o Brasil possua programas federais, como o Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas (PPDDH), a eficácia e a capilaridade dessas ferramentas nas áreas remotas e conflagradas são questionáveis. Muitas vezes, as ameaças são sutis, diárias e pulverizadas, tornando difícil a inclusão imediata e efetiva no programa. 

Dimensão de gênero

O crime contra Antônia e Marly é percebido como uma tentativa de desarticular a organização comunitária e silenciar a voz das mulheres que defendem o território, sendo um ataque com clara dimensão de gênero. Foto: MIQCB.

O crime contra Antônia e Marly é percebido como uma tentativa de desarticular a organização comunitária e silenciar a voz das mulheres que defendem o território, sendo um ataque com clara dimensão de gênero. Foto: MIQCB.

O ataque violento a duas trabalhadoras vulneráveis aponta para a intersecção perversa entre a misoginia e a disputa territorial. Na hierarquia de poder imposta pelo conflito agrário, as mulheres camponesas são frequentemente alvo de ameaças mais crueis e de violência sexualizada, usada como instrumento de terror e humilhação para desmoralizar e desarticular a organização comunitária. A CPT tem alertado, inclusive, para o aumento de assassinatos de mulheres no campo, sendo o Pará um dos estados com mais vítimas.

O MIQCB tem na sua espinha dorsal a força feminina, e este crime é percebido como uma tentativa de quebrar essa espinha, de calar a voz que se levanta contra a exploração. Em um estado que acaba de sediar a Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP30), vendendo uma imagem de vanguarda ambiental, o contraste não poderia ser mais gritante. Enquanto o governo falava de “Amazônia Sustentável”, atraindo os holofotes globais para a capital, no interior, as verdadeiras guardiãs da biodiversidade perdiam suas vidas por exercerem seu direito de trabalhar na floresta. 

O assassinato escancara a urgência de tirar a pauta dos conflitos agrários e da violência de gênero da periferia das discussões e colocá-la no centro da política ambiental e de segurança pública do Brasil.

Exigências e propostas estruturais para a Justiça

A dor da perda de Antônia e Marly se transforma em combustível para a luta, reforçando a exigência pela aplicação da Lei do Babaçu Livre e por políticas de desenvolvimento que valorizem o extrativismo sustentável sobre a monocultura predatória. A memória delas deve impulsionar para que o Brasil e o mundo olhem para a Amazônia além do verde da floresta, enxergando a vulnerabilidade e a coragem de seus povos tradicionais. Sua história é a crônica da resistência na Amazônia, um grito pela vida e pela dignidade do trabalho no campo, que jamais será silenciado.

O Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu e as organizações parceiras articulam-se com a Procuradoria da República, o Ministério Público Federal e órgãos de acesso à justiça para garantir que o caso de Novo Repartimento não caia no esquecimento e, principalmente, para que sejam adotadas medidas concretas de proteção às comunidades do campo que vivem à mercê da violência de grupos criminosos. 

A Justiça não pode se limitar a prender o executor; precisa garantir que o território seja um lugar seguro. O papel das quebradeiras de coco babaçu como defensoras ambientais é inegável.  Portanto, é crucial que o governo não apenas puna, mas adote medidas estruturais, como a regularização fundiária das áreas de extrativismo e a demarcação de reservas extrativistas, garantindo legalmente o acesso livre aos babaçuais e desarmando a disputa com o agronegócio.

A comoção causada pelos assassinatos de Antônia e Marly reabre debates urgentes sobre a responsabilidade do Estado brasileiro no cumprimento de tratados internacionais de direitos humanos e proteção ambiental. O Brasil é signatário de acordos que exigem a preservação das comunidades tradicionais, como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), mas a distância entre compromisso legal e prática concreta permanece significativa. A ausência de políticas contínuas permite que áreas como Novo Repartimento se tornem territórios de exceção, onde a proteção estatal chega tarde ou, simplesmente, não chega.

O caso também reacende a discussão sobre a criação de um protocolo nacional de investigação para crimes contra defensores de direitos humanos — proposta antiga de organizações da sociedade civil. Sem esse protocolo, cada assassinato é tratado como caso isolado, quando, na verdade, compõe um mosaico de violência sistemática no campo. Um procedimento específico obrigaria polícias e Ministério Público a investigarem possíveis mandantes, contexto territorial e ameaças prévias, evitando que a investigação se limite ao executor.

As próprias quebradeiras relatam estar com medo, ansiedade e um profundo abalo emocional para retornar ao trabalho. O babaçu, antes símbolo de vida, agora divide espaço com o trauma. A morte das duas mulheres afeta toda a cadeia produtiva, da coleta ao beneficiamento, e compromete a economia comunitária, já marcada pela precariedade.

A luta, portanto, não é apenas por justiça penal, mas pela reconstrução social e emocional da comunidade — transformando o luto em organização e resistência, para que a memória de Antônia e Marly permaneça como semente de justiça e dignidade.

Texto: Zé Luís Costa
Revisão e Montagem de página: Juliana Carvalho
Direção: Marcos Colón

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