Marie Coudreau: o papel das mulheres viajantes no colonialismo amazônico

Ensaio reflete sobre os relatos de viagem de Marie Coudreau e sua importância para a compreensão da Amazônia na virada do século XX

Grupo da expedição de Marie Coudreau
Grupo da expedição de Marie Coudreau
Grupo da expedição de Marie Coudreau

Grupo da expedição de Marie Coudreau. Foto: livro Voyage au Trombetas, 1889

Ao estudar a produção dos viajantes que exploraram a Amazônia durante o boom da economia da borracha, no início do século XX, é essencial compreender o contexto imperialista em que estavam inseridos. Por essas bandas, bem no alvorecer da República, o norte do território nacional — essa invenção cartográfica estatal — era alvo de disputas com potências europeias, sendo as explorações científicas uma das frentes de atuação (ao lado da diplomacia e das comissões de demarcação) de interesses imperiais na região.

As explorações mesclavam diversos objetivos: cartografia, identificação de potenciais recursos econômicos, catalogação zoobotânica, etnografia, estudo geográfico na perspectiva empírica e descritiva, interesse pelas línguas e culturas locais, etc. Visavam, pois, aumentar o conhecimento global, conforme expressara Conrad Malte-Brun (citado por Gonzales, 2022, p. 27), da Sociedade Geográfica de Paris.

É notoriamente extensa a lista de expedições e explorações na Amazônia até os anos 1920-1930, mas muito pouco se fala da francesa Marie Octavie Coudreau (1867-1938), personagem que ilustra bem esse contexto. Iniciando-se no mundo das explorações ao lado de Henri Coudreau (1859-1899), seu marido, que veio a falecer durante uma viagem ao rio Trombetas, Marie Coudreau cumpriu outras jornadas pela Amazônia, explorando os rios Cuminá, Curuá, Mapuera, Maicuru (no Pará, entre 1900 e 1903) e Canumã (no Amazonas, 1905-06). Viagens que foram financiadas pelos governos do Pará e do Amazonas.

Retornou à França após sua última viagem e foi sendo olvidada, apesar de algumas menções em expedições como a de Gastão Cruls. No entanto, recentemente tem ocorrido um ressurgimento do interesse por sua obra. Sua Viagem ao Cuminá foi traduzida para o português em 2023 e diversos pesquisadores, como Souza Filho (2008), Farias Júnior (2016), Carey-Webb (2017) e Ferretti (2017), têm se aprofundado no estudo da autora.

Sem cair no risco de, ao destacar vozes subalternas, como a de Marie Coudreau, heroicizar personagens não hegemônicos, atenuando seus juízos sobre o “mundo tropical”, é de suma importância destacar a questão de gênero. Tratava-se uma mulher europeia liderando explorações na Amazônia, no início do século XX.

Manaus no século XX. Foto: Marcos Colón/Arquivo Pesssoal

Manaus no século XX. Foto: Marcos Colón/Arquivo Pesssoal

Entretanto, outros aspectos são fundamentais para entender os relatos de Marie Coudreau. Considerando o contexto histórico e os processos de formação territorial do Brasil, bem como as dinâmicas específicas em que Coudreau estava inserida, é possível trazer à luz objetivos e dinâmicas internas de suas viagens. Em suma, uma figura marginal, não financiada pelas potências capitalistas, mas sim, alinhada aos discursos do poder local, zelosa em sua crença na superioridade racial enquanto contrapeso para a suposta inferioridade de gênero — aspecto frequente no discurso das viajantes (Garcia-Ramon, 2016, p. 53).

Os objetivos das viagens de Coudreau, embasados em pressupostos deterministas e etnocêntricos, estavam ligados aos interesses políticos, econômicos e territoriais das classes dominantes locais de Belém, Manaus e do Baixo Amazonas, legitimando-as, fazendo da viajante francesa uma verdadeira agente estatal.

Os discursos territoriais (geográficos) elaborados por Coudreau atestam uma complexidade muito maior na apropriação do território do que o imaginado pelas instituições estatais: profundas desigualdades socioeconômicas compunham uma dinâmica de apropriação do território bastante intricada e móvel.

A bacia do Trombetas despertava uma verdadeira obsessão geográfica desde meados do século XIX, sendo explorada por expedições como as de Barbosa Rodrigues e do Padre Nicolino José Rodrigues de Souza. Os motes econômicos predominantes na região incluíam a pecuária, o cultivo de cacau e, cada vez mais, a produção de borracha.

O então governador do Pará, Pais de Carvalho (1897-1901), encomendou ao casal Coudreau uma exploração à cobiçada bacia e a regiões circunvizinhas, o que compreendeu uma série de expedições: ao Trombetas (Coudreau & Coudreau, 1900), ao Cuminá (Coudreau, 1901) e ao Curuá (Coudreau, 1903a). Contudo, o sucessor de Pais de Carvalho, Augusto Montenegro, deixou Marie Coudreau num impasse, pois havia incertezas sobre a continuidade de sua ambiciosa empreitada geográfica.

O novo governador do Pará, me confia uma nova missão, para grande surpresa e para a maior contrariedade daqueles que já me julgavam afundada e que já estavam curiosos para ver como eu sairia dessa situação difícil, não tendo nem dinheiro, nem trabalho (Coudreau, 1903b, p. 2).

Vê-se que, no seio das classes dominantes, Coudreau estava sujeita a disputas. Embora Montenegro tenha garantido o financiamento de sua viagem ao rio Maicuru (Coudreau, 1903c), durante a exploração surpreendentemente comunicou que o estado do Pará não teria mais recursos para manter um “explorador oficial” (Montenegro, citado por Coudreau, 1906, p. 4). Pistas em sua última publicação (Coudreau, 1906, p. 3) apontam que Coudreau passara a residir no Rio de Janeiro, quando foi convidada pelo governador do Amazonas, Constantino Nery, para liderar uma exploração ao rio Cuminá, situado no sul desse estado. Assim, baixo Amazonas e Sul amazonense foram as regiões exploradas.

Seus livros são marcados por descrições supostamente neutras e a ênfase no referenciamento a toponímias e na medição de altitudes e coordenadas geográficas, informações que visavam aprimorar ou consolidar as cartografias oficiais, enquanto as fotografias e desenhos contribuíam para a construção de uma narrativa civilizatória, bastante comum na construção visual do imaginário sobre a Amazônia (Zouein, 2016), ao contrapor o “progresso” das cidades como Manaus ao “atraso” de quilombolas, indígenas e seringueiros.

Os primeiros livros da autora contaram com a sistematização de mapas pelo Instituto Geográfico da Universidade Nova de Bruxelas, graças à influência do famoso geógrafo anarquista Élisée Reclus, que mantinha correspondência com interlocutores tão diferentes como Henri Coudreau e o Barão do Rio Branco, a quem Marie Coudreau solicitou audiências ao longo do ano 1904 (Cardoso, 2018, p. 246). Essas conexões ilustram o alcance das redes intelectuais e políticas envolvidas em suas expedições.

Mapa dos povos indígenas criado durante a expedição de Marie Coudreau. Arte: livro <em>Voyage au Trombetas</em>, 1899

Mapa dos povos indígenas criado durante a expedição de Marie Coudreau. Arte: livro Voyage au Trombetas, 1899

No caso da bacia do Trombetas, destacava-se na cartografia a presença de comunidades indígenas e quilombolas, assim como a existência de “campos gerais”, informações as quais as classes dominantes de Alenquer e Óbidos, composta por cacaulistas, pecuaristas e “donos” de castanhais, estava ávida em receber. Igualmente, os campos gerais estavam próximos a territórios sujeitos a litígios diplomáticos e mal definidos cartograficamente, contexto que justificava amplamente a exploração de Coudreau para a ocupação da região do ponto de vista estatal.

Após [as viagens de] Padre Nicolino, Gonçalves Tocantins […], encarregado de uma missão oficial, tentou ir, entre 1890-1891, aos campos do Alto Cuminá e realizar o levantamento do rio. Viu os campos, ficou entusiasmado e, ao relatar sua missão, concluiu pela necessidade de uma estrada entre Óbidos, cidade situada na margem esquerda do Amazonas, e os campos gerais do Alto Cuminá. Os fazendeiros de Óbidos apoiaram seu projeto para estabelecer fazendas nos campos da Guiana Brasileira. (Coudreau, 1901, p. 142)

Afora a hipotética paralisação do projeto devido à grande distância a percorrer, a exploradora francesa atribuía esse fracasso à presença de quilombolas e indígenas na região. Examinemos mais de perto esse ponto.

A formação autodidata de Coudreau estava impregnada de um determinismo climático e geográfico, combinado ao poligenismo de Louis Agassiz e Armand de Quatrefages, dos quais se dizia discípula. Essa teoria propunha as origens humanas a partir de troncos diferentes, implicando em hierarquias biológicas desiguais, o que contrastava com o monogenismo, já na época amplamente aceito no campo da ciência.

Importa verificar como as concepções poligenistas e racistas de Coudreau influenciaram sua interpretação dos quilombolas e indígenas. Essas ideologias encontraram terreno fértil no Brasil, durante um momento de construção ideológica das identidades regionais e nacionais, pautadas muitas vezes numa leitura segundo a qual a natureza era ao mesmo tempo exaltada e apresentada como obstáculo ao “progresso” (Murari, 2009). Enquanto as riquezas naturais, a vastidão territorial e o clima tropical eram considerados fatores positivos na interpretação sobre a identidade nacional, emergia uma abordagem negativa, sugerindo que essas mesmas dádivas da natureza estavam sendo exploradas de maneira ineficaz devido às características raciais do povo (Machado, 2001 pp. 312-313). Daí as famigeradas teses reivindicativas do branqueamento da população brasileira.

Para Marie Coudreau, as populações quilombolas e ribeirinhas do Baixo Amazonas eram vistas não apenas como um entrave ao progresso, mas como culturas que deveriam ser apagadas. Estava-se havia menos de duas décadas da abolição formal da escravidão e Coudreau, depreciando essas comunidades, argumentava que estavam destinadas a desaparecer, inclusive porque viviam num ambiente geográfica, climática e moralmente desfavorável. Retratava-os como descendentes de antigos escravos “fugidos de seus senhores”, atribuindo-lhes todos os “defeitos” de seus pais e acrescentando uma “coleção de vícios” que os levava de volta ao “estado selvagem e à barbárie” (Coudreau, 1903 a, p. 17). Passagens que não poderiam estar mais consoantes à mentalidade escravocrata dos “senhores”.

Quanto aos indígenas, Coudreau os via como raças primitivas e acreditava que o contato com os civilizados os corrompia. Via, assim, duas sinas possíveis: desaparecimento ou assimilação por meio da mestiçagem. Neste caso, sendo os “brancos” também influenciados pelo meio geográfico, considerava que somente numa longa duração, medida em mais de século e não somente em poucas décadas, esses novos mestiços atingiriam um nível intelectual e moral satisfatório, numa espécie de lenta aclimatação.

A suposição de que um processo migratório levaria a um melhor aproveitamento econômico da região leva-a à defesa de um projeto abertamente colonizador. Em sua viagem ao Sul amazonense, Coudreau enfatizou a “desorganização” do trabalho, no que toca à economia da borracha, atividade que julgava ser geograficamente difusa. Indignava-se (Coudreau, 1906, p. 186) com o fato de seringueiros viajarem meses subindo os rios, quando haveria. Segundo ela, grandes quantidades de árvores de caucho (uma das espécies usadas para retirada de látex), bem mais próximas a localidades como Canumã e Maués.

Inerente à economia extrativista, essa dispersão geográfica do trabalho caracterizava uma sociedade igualmente desagregada, esmagada pela influência negativa do meio.

Cachoeira no Rio Trombetas, registrada pela expedição de Marie Coudreau. Crédito: Livro Voyage au Trombetas, 1889

Cachoeira no Rio Trombetas, registrada pela expedição de Marie Coudreau. Crédito: Livro Voyage au Trombetas, 1889

A viagem de Marie Coudreau ao Canumã tinha como um dos objetivos investigar a viabilidade de uma rota de escoamento da borracha, conhecida como “caminho Munduruku” (caminho de ferro que por muito pouco não começou a ser construído, entre 1912-1913). Embora a presença dos Munduruku fosse registrada desde o Madeira até o Tapajós (Rocha, 2017), não se lhes atribuía tradicionalmente o território do Canumã. No entanto, a proximidade entre essa pequena bacia hidrográfica e a margem esquerda do Tapajós intrigava a exploradora, que observara a presença de Mundurukus nos “campos gerais” — novamente essa idílica paisagem — da região durante uma viagem anterior, ainda com Henri Coudreau (1897).

O projeto geográfico de Coudreau visava fomentar a colonização, como dissemos, de forma similar à política imperialista francesa na África. Ela defendia a necessidade de construir ferrovias para competir no mercado internacional com as colônias francesas e britânicas. No Amazonas, segundo Constantino Nery, a construção de rotas conectadas a Manaus otimizaria a economia estadual, baseada principalmente em “produtos espontâneos”. Assim, o papel dos exploradores deveria ser mais econômico do que científico, visando a ocupação e posse de vastas áreas desconhecidas do estado (Coudreau, 1903a, 1906).

Neste breve ensaio, podemos nos perguntar: o que revelam ou ocultam os relatos de viagem de Marie Coudreau? Por que a importância de os estudar?

Os livros, projeto ambicioso de escrever para as massas, dentro da tradição dos “romances geográficos” (Dupuy, 2006), trazem observações sobre a flora da Amazônia, contribuindo para o conhecimento científico da época. Exemplifica isso as descrições sobre localização do caucho (Castilla ulei) e da seringueira verdadeira (Hevea brasiliensis).

Como um efeito reverso de um discurso em prol dos interesses estatais, iluminando as relações entre as explorações e os interesses das classes dominantes locais (patente seu vínculo aos “coronéis” locais e governantes), e evidenciando o papel político das expedições, acabam por documentar não somente as condições de vida e presenças geográficas das comunidades indígenas e quilombolas, mas sim, os impactos da exploração da borracha: estruturação social, relações de trabalho e condições de vida dos seringueiros.

Embarcação saindo rumo ao rio Trombetas. Foto: Marcos Colón/Arquivo Pessoal

Embarcação saindo rumo ao rio Trombetas. Foto: Marcos Colón/Arquivo Pessoal

Especificamente na viagem ao Canumã, Coudreau acaba por destacar a violência e a exploração na economia extrativista da borracha. Descreve como os “patrões” exerciam poder territorial no Sul amazonense, impondo condições análogas à escravidão aos seringueiros. Coudreau (1906, pp. 108-110, 146, 176) testemunha indígenas Munduruku escravizados e famintos, à beira da morte, e o ciclo de miséria de prostituição de mulheres indígenas e mestiças.

Por outro lado, seus escritos eclipsaram quaisquer perspectivas indígenas e quilombolas. Como visto, ao documentar essas comunidades, os relatos são permeados por preconceitos raciais e etnocêntricos, desconsiderando ou mal interpretando conhecimentos e territorialidades dos povos tradicionais e originários, exercício impossível dentro do enquadramento das culturas locais em teorias racistas e deterministas. Embora não fosse uma questão à época, as consequências ambientais das atividades econômicas na região amazônica também foram totalmente desconsideradas.

Coudreau seria, afinal, incapaz de captar as contradições de uma economia capitalista extrativista periférica. Como documento histórico, no entanto, registrou aspectos sociais e econômicos relevantes, além de documentar detalhadamente a presença antiga de povos indígenas e tradicionais, num momento em que os direitos dessas populações sobre seus territórios são questionados.

O papel das mulheres viajantes, as conturbações cientificas, a perspectiva histórica sobre culturas dos povos tradicionais e originários, história ambiental e econômica e a reflexão crítica sobre colonialismo e imperialismo ficam como agendas para pesquisas e investigações sobre personagens esquecidas da história, como Marie Octavie Coudreau.

Referências

Paulo Roberto de Albuquerque Bomfim é professor titular de Geografia no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (Ifsp). Pesquisador em nível de pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Agriculturas Amazônicas (PPGAA), do Instituto Amazônico de Agriculturas Familiares (Ineaf), da Universidade Federal do Pará (UFPA), sob supervisão do Prof. Dr. Maurício Gonsalves Torres.

Clarissa Maciel Cavalcante é professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará (IFPA). Doutoranda em Educação Matemática na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).


Edição:
Alice Palmeira
Revisão:
Isabella Galante
Direção: Marcos Colón

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