Para entender o que está em jogo na Amazônia
‘The Amazon in Times of War’, de Marcos Colón, mescla técnicas de jornalismo, investigação acadêmica e artesanato literário para mergulhar nos problemas-chave e conflitos ambientais da região que tem importância crucial para o futuro do planeta
Indígenas das etnias Matis e Mayuruna, durante um protesto pelo desaparecimento do jornalista Dom Phillips e do indigenista Bruno Pereira, na cidade de Atalaia do Norte, Vale do Javari, estado do Amazonas, Brasil, na segunda-feira, 13 de junho de 2022. Foto: Edmar Barros.
Este texto foi originalmente publicado em espanhol na Revista Nómadas
O entendimento das questões globais relativas ao meio ambiente nos dias atuais passa necessariamente pela compreensão do que transcorre na Amazônia, no Norte do Brasil. Não é possível ignorar o que acontece na região porque teve, tem e terá repercussões diretas na vida e no equilíbrio do planeta.
E o que ocorre hoje na Amazônia é fruto de uma intrincada rede de interesses geopolíticos, jogos diversos de influência, blefes e decorrências antropológicas, de saúde pública, culturais e históricas.
Por isso, para criar uma grande clareira e possibilitar que se enxergue no meio desse intenso nevoeiro, seria preciso um acompanhamento sistemático da região de um ponto de vista novo – envolvido e emocionado, mas ao mesmo tempo imparcial e objetivo; com conhecimento científico, mas também dotado da percepção humanística, de um guia de sentimentos tão dinâmico ao ponto da eficácia imediata; um olhar investigativo, capaz de misturar o diagnóstico social e ouvir atenta e respeitosamente as advertências dos filhos da terra; ativista, mas sem a inocência de ignorar os grandes interesses sazonais envolvidos, a demagogia, as intrigas forjadas artificialmente e as demandas justas da população amazônica pré-estabelecida.
Dificilmente, para penetrar com tal grau de pertinência nessa esfera do conhecimento sobre a Amazônia, um leitor comum vá encontrar um livro tão esclarecedor, profundo e apropriado quanto The Amazon in Times of War, de Marcos Colón.
Em três grandes partes, 20 capítulos divididos entre ensaios e reportagens, abrangendo um turbulento período temporal que vai de 2018 a 2021, o livro radiografa os fulcros cruciais da problemática amazônica nos tempos contemporâneos.
Esse período, no Brasil e não apenas no Brasil, coincide com a emergência da extrema direita no poder – uma extrema direita em busca de revitalizadas frentes de batalha, novos slogans, novos dogmas, e concentradamente dedicada ao meio ambiente, num múltiplo esforço de estigmatização e destruição.
O livro parte dos sinais de fumaça que, de forma inédita, colocaram o destino da Amazônia no olho do furacão da opinião pública mundial. “Aproximadamente às 3 horas da tarde do dia 19 de agosto de 2019, a cidade de São Paulo foi mergulhada na mais completa escuridão – o dia se tornou noite”, relata Colón.
A fumaça que escureceu a maior cidade da América Latina, dizia-se, era proveniente das queimadas no Pantanal e na Amazônia, o que suscitou uma reação de apocalipse iminente e catapultou o País para um debate que ocupou o centro das questões internacionais.
Nesse cenário, o governo brasileiro, de extrema direita, aproveitou para colocar mais combustível na polêmica, insuflando a presença de garimpeiros e invasores de terras nos territórios atingidos.
O governo, por sua vez, encontrou nos incêndios um pretexto para colocar a culpa nas gestões anteriores, que eram de esquerda, e seguir estimulando a predatória dos recursos naturais (a imprensa reportou, mais tarde, que o próprio ministro do Meio Ambiente teve lucro com a extração de madeira ilegal na Amazônia).
O incêndio real começou a fornecer lenha para outro incêndio queimar: a queimada ideológica.
Os ensaios do livro foram escritos nesse clima, entre no calor das queimadas e da violência encetada pelo tráfico de drogas na tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru, em cidades como Leticia (Colômbia) e Tabatinga (Brasil), a partir de uma incursão heroica pela região em plena emergência da pandemia de Covid-19.
Colón percorreu caminhos que em breve se mostrariam fatais para outros investigadores – como foi o caso do assassinato do jornalista britânico Dom Philips e do agente indígena brasileiro Bruno Pereira. Informando-se por uma rede dispersa de jornalistas e ativistas (e colaborando com) que resiste buscando a verdade, atuando de forma testemunhal, prospectando soluções para a área, o autor oferece ao leitor um GPS para a compreensão das diversas forças que atuam, para o bem e para o mal, na Amazônia.
Com rigor acadêmico (mas distante do “rigor mortis” da pesquisa de gabinete), Marcos Colón percorreu a composição geográfica e humana das cidades ribeirinhas e suas problemáticas.
Cidades como Careiro da Várzea, na região metropolitana de Manaus, na qual os habitantes (muitos deles sem teto radicados ali) dividem o ano entre as perdas com as enchentes e as perdas com a saúde pública. Sem preocupação com inventários antropológicos, o autor conecta as diferentes etnias, as nações indígenas, a partir dos desafios comuns.
São os povos indígenas os elos mais vulneráveis daquelas cadeias de resistência, mas sua tenacidade em seguir agindo como monitores e defensores da floresta é que trouxe alguma integridade para a Amazônia, ao menos até aqui.
Por conta disso, seria evidente que se tornariam os inimigos declarados de diferentes frentes de ataque, seja do próprio governo (a eleição de Jair Bolsonaro em 2018, cria uma nova situação: o Estado brasileiro passa a agir como cúmplice dos predadores de todo tipo, enfraquecendo deliberadamente os órgãos de fiscalização ambiental e ignorando as leis), seja do tráfico de drogas, seja das novas doenças, epidemias e pandemias.
O Estado bolsonarista inibiu as punições dos atores ilegais da ocupação, impedindo a destruição de equipamentos apreendidos e colocando em risco a vida dos agentes de fiscalização do próprio Estado. Em seguida, repassou aos militares uma incumbência com a qual não tinham a menor intimidade ou know-how.
Examinar esse período em que o chamado bolsonarismo ditou as regras (ou a ausência delas) no País é crucial para se compreender o momento atual da encruzilhada amazônica.
Para se ter uma ideia do descalabro: a gestão Bolsonaro chegou a transferir a responsabilidade pela certificação de territórios indígenas da FUNAI (Fundação Nacional do Índio, na ocasião) para o seu Ministério da Agricultura, cuja gestão se caracterizou pela confluência de interesses com o agronegócio.
Esse avanço da extrema direita tem efeitos ainda a serem diagnosticados – como a liberação de cerca de novos 439 tipos de pesticidas na produção de alimentos.
Os artigos cobrem o período crucial da mudança de entendimento da centralidade do meio ambiente como o grande tema deste século. Consequentemente, é também o momento da instalação do confronto decisivo.
Para complicar tudo, a atuação do crime organizado vai se consolidando no cenário. Para o leitor, é importante conhecer as siglas e os interesses envolvidos, como os da Família do Norte (FDN), facção cujo surgimento é fruto de uma aliança com o Comando Vermelho do Rio de Janeiro, e suas guerras com o PCC, principal facção do crime organizado em São Paulo.
A segunda parte do livro, finamente ilustrada com fotografias, é uma espécie de Diário de Bordo do escritor. As legendas que explicam as circunstâncias das fotos são novas reportagens, micro-viagens em que o leitor passa a compreender o cenário, a dinâmica da vida humana local.
O Brasil é um dos países com uma das mais extensas fronteiras internacionais, assinala o autor. Ela possui 16.885 quilômetros, tocando quase todos os países da América do Sul, à exceção de Chile e Equador.
Essa vastidão é um desafio para as políticas públicas governamentais e um convite às ilegalidades, como o tráfico internacional de drogas e de armas, o ataque aos recursos naturais, a dificuldade de policiamento que insufla a violência e sitia as cidades.
Mas há outro problema crônico derivado do capitalismo predatório: a desigualdade social. Isso complica exponencialmente as coisas.
Filho de pai americano e mãe brasileira, o autor, Marcos Colón, leciona jornalismo na Arizona State University. É especialista em comunidades indígenas, editor, articulista de jornais e revistas e também documentarista, diretor dos filmes Beyond Fordlândia (2018) e do premiado Stepping Softly on the Earth (2022).
Seu livro mostra que a disputa pelo território (terra, floresta, rios, subsolo, riquezas) se dá em um contexto complexo, com uma população local extremamente empobrecida, distanciada das técnicas de produção autossustentáveis, com povos indígenas sitiados pelo preconceito e fake news, com feudos políticos cristalizados e violentos.
Nesse cenário, fome e vírus se tornam aliados e a letalidade das doenças é muito maior, a destruição se dá em progressão infinita.
O fato é que há diversos mundos convivendo na moderna Amazônia.
À questão política (batizada aqui de “fascismo ambiental”), soma-se a tragédia da falta de informação, de conhecimento, a intervenção do “achismo”, do chute e da ignorância.
Municiado de uma intensa agenda de encontros com fontes indígenas, colegas sertanistas e jornalistas, audições e trabalho de campo, o autor inventaria o impacto do avanço dos interesses em regiões como a da tríplice fronteira, delicado ecossistema em que vivem 6 mil pessoas originárias de 26 nações indígenas (19 das quais são povos isolados).
O resultado do seu trabalho pode funcionar com dupla amplitude, tanto como obra de referência, de consolidação de fatos para consultas, como de reflexão e conscientização.
Produzido fora do ambiente de confrontos regionais, com equidistância, The Amazon in Times of War é um livro que diagnostica os motivos da guerra, mas, principalmente, aponta para as possibilidades da paz e da resolução de conflitos.
Este texto foi publicado originalmente em espanhol pela Revista Nómadas. Acesse aqui a versão original.
The Amazon in Times of War
Autor: Marcos Colón
Ano: 2024
Páginas: 222
Idioma: Inglês
Editoras: Practical Action Publishing & Latin America Bureau
Compre as versões em digital ou física aqui.
Jotabê Medeiros é escritor e repórter, trabalhou como jornalista na Folha de S.Paulo, O Estado de S.Paulo, Veja SP e CartaCapital. Participou de diversas coletâneas e publicou vários livros, entre eles, Raul Seixas – Não diga que a canção está perdida (2019), finalista do Prêmio Jabuti.
Arte: Fabrício Vinhas
Montagem da Página e Acabamento: Alice Palmeira
Revisão: Glauce Monteiro
Direção: Marcos Colón