Geografias do Bolsonarismo: a base espacial do autoritarismo brasileiro

Entre a expansão das commodities, do negacionismo e da fé evangélica

A editora Amazônia Latitude Press disponibiliza gratuitamente a versão digital de "Geografias do Bolsonarismo", de Bruno Malheiro. Arte: Fabrício Vinhas/Amazônia Latitude.
A editora Amazônia Latitude Press disponibiliza gratuitamente a versão digital de "Geografias do Bolsonarismo", de Bruno Malheiro. Arte: Fabrício Vinhas/Amazônia Latitude.
A editora Amazônia Latitude Press disponibiliza gratuitamente a versão digital de "Geografias do Bolsonarismo", de Bruno Malheiro. Arte: Fabrício Vinhas/Amazônia Latitude.

A editora Amazônia Latitude Press disponibilizou a versão digital de “Geografias do Bolsonarismo”,
de Bruno Malheiro. Arte: Fabrício Vinhas/Amazônia Latitude.

Geografias do Bolsonarismo: entre a expansão das commodities, do negacionismo e da fé evangélica1MALHEIRO, Bruno. Geografias do Bolsonarismo: entre a expansão das commodities, do negacionismo e da fé evangélica no Brasil. Rio de Janeiro: Amazônia Latitude Press, 2023. começou a ser escrito entre o primeiro e o segundo turno das eleições presidenciais de 2022 e foi finalizado algumas semanas após a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva contra o então presidente Jair Bolsonaro. A tese central é a de que o fenômeno de adesão à extrema direita no Brasil tem bases espaciais concretas em três geografias: a de expansão das commodities; a do negacionismo; e a da fé evangélica. Os argumentos se sustentam teórico-metodologicamente. Entretanto, o livro foi escrito com a intenção de ser um documento de intervenção política e de diálogo com a esquerda brasileira.

Passados quase três anos da escrita inicial, Jair Messias Bolsonaro e parte de seus aliados, que construíram uma trama golpista de instalação de um Estado autoritário, são condenados pelo Supremo Tribunal Federal. A tentativa de golpe, como um todo, acaba sendo uma alegoria dos argumentos do livro: em torno da figura de um líder que vocaliza os esgotos da sociedade brasileira, temos uma agitação política patrocinada por fazendeiros e empresários do agronegócio brasileiro, com mobilização e participação direta de líderes religiosos das igrejas neopentecostais.

Jair Messias Bolsonaro e parte de seus aliados, que construíram uma trama golpista de instalação de um Estado autoritário, são condenados pelo Supremo Tribunal Federal. Foto: José Cruz/Agência Brasil.

Jair Messias Bolsonaro e parte de seus aliados, que construíram uma trama golpista de instalação de um Estado autoritário, são condenados pelo Supremo Tribunal Federal. Foto: José Cruz/Agência Brasil.

Essa mobilização ganha adesão de parte da população que, misturando o empresariamento de si com a lógica segundo a qual o sucesso é uma escolha individual de fé, nega suas frustrações cotidianas para, então, embarcar na fantasia de um mundo paralelo, no qual são protagonistas de uma história de redenção, que, em realidade, se funda em um negacionismo cujo objeto central a ser negado é o próprio Estado Democrático.

Uma pergunta, entretanto, ressoa: o que será do Bolsonarismo com a condenação de Bolsonaro e de seus aliados? Aqui, talvez, esteja a maior contribuição do livro, uma vez que não tratamos o Bolsonarismo apenas como os arranjos políticos de uma família, mas como uma racionalidade fincada em processos espaciais que continuam plenamente ativos na sociedade brasileira. 

As três geografias do autoritarismo

Isso nos mostra que, com ou sem Bolsonaro, esse vírus do autoritarismo continuará a se alastrar se não enfrentarmos o que realmente o sustenta, a saber: 1. A geografia de expansão dos negócios das commodities, que nunca conviveu bem com as democracias e que não é apenas um fenômeno econômico, mas sociocultural, pois, através de seus circuitos auxiliares, modela modos de pensar, agir, comer, ouvir música e se divertir; 2. A geografia de expansão do negacionismo, retroalimentada pelas narrativas bolsonaristas e fatidicamente experimentada no período da pandemia do coronavírus; 3. A geografia de expansão da fé evangélica, cujo núcleo da teologia da prosperidade – para a qual sucesso e fracasso é uma escolha individual de fé –  acopla-se à racionalidade do empresariamento de si, produzindo um individualismo na relação com o sagrado que, por sua vez, quebra todas as relações com mediadores (Santos, Orixás, Encantados etc.), relação essa que sempre foi fundamental para a formação de comunidades no Brasil.

Essas três geografias permanecem ativas em nossa sociedade e possuem uma distribuição geográfica coincidente com o fenômeno eleitoral bolsonarista, não por pura sobreposição cartográfica, mas por serem as bases de uma racionalidade autoritária que ganhou organização, mobilização, vocalização de suas demandas e projeto de tomada de poder com o Bolsonarismo.

O vínculo histórico entre commodities e autoritarismo

A tese, portanto, contida no livro, embora pareça conjuntural, não o é. A história do capitalismo no Brasil é marcada por uma violenta geografia de expansão territorial de frentes econômicas que se implantaram país adentro, ignorando todas as formas de vida humana e não humana que encontraram no caminho. Assim foram as frentes do ouro, do gado, dos garimpos, dos monocultivos, da pecuária, mas também a formação das nossas principais cidades. Assim continuam a ser as frentes da mineração, do agronegócio, do carbononegócio… 

Esse modo de produzir fronteiras é um modo de destruir territórios da vida pela transformação de bens comuns em mercadoria, que nada mais é que a transformação de uma terra indígena em garimpo, de um território quilombola em latifúndio, de uma aldeia indígena em uma cidade. Da colônia ao império, dos bandeirantes aos pecuaristas e sojeiros do século XXI, a lógica hegemônica do capitalismo no Brasil é a expansão territorial de negócios que, para funcionar, precisa produzir uma guerra encarniçada contra os que se colocam em seus caminhos.

Figura I – A expansão da pecuária e o Bolsonarismo.

A expansão da pecuária e o bolsonarismo. Fonte: ABIEC (2020) e VEJA O RESULTADO... (2022). Crédito: Amazônia Latitude Press.

Fonte: ABIEC (2020) e VEJA O RESULTADO… (2022). Crédito: Amazônia Latitude Press.

Essa geografia de guerra é renovada quando escolhemos as commodities como saída de desenvolvimento em pleno século XXI. Esses negócios, como já afirmamos, não conseguem conviver com a democracia, pois não se estruturam enormes monocultivos, grandes projetos minero-metalúrgicos, usinas hidrelétricas, estradas, hidrovias e ferrovias sem mudanças traumáticas nos espaços nos quais essas dinâmicas se instalam, ou ainda, sem a flexibilização e/ou o desrespeito às leis que assegurem qualquer direito aos territórios por elas afetados. A democracia não vale muito para os articuladores do agro e dos negócios de mercantilização da vida; basta observarmos os Atos Golpistas de 8 de janeiro de 2023.

Maria da Conceição Tavares (2000)2TAVARES, Maria da Conceição. “Subdesenvolvimento, dominação e luta de classes . In: TAVARES, Maria da Conceição (org.). Celso Furtado e o Brasil. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo, 2000. p. 129-154, no final da década de 1990, já indicava que, para manter o pacto de dominação social férreo entre os donos da terra, o Estado e os donos do dinheiro no Brasil, sempre se recorreu a golpes. Otávio Guilherme Velho (1979)3VELHO, Otávio Guilherme. Capitalistmo Autoritário e Campesinato. Rio de Janeiro: Difel, 1979. também já havia nos alertado sobre a imposição de formas específicas de dominação política nas fronteiras capitalistas do Brasil, para nos falar em um capitalismo autoritário. 

A contribuição metodológica da análise

Não é novidade, portanto, a relação entre a expansão das commodities e o autoritarismo, mas talvez não seja muito usual pensar esse movimento também como de expansão de racionalidades e subjetividades marcadas, sobretudo por: um modo colonial e racista de tratamento das diferenças; por uma identidade proprietária patriarcal; uma noção instrumental da natureza como negócio; um modo antidemocrático de tomada de decisões; uma lógica violenta e armamentista de defender a propriedade; um modo de pensar a liberdade como manutenção de privilégios; uma maneira patrimonialista de tratamento dos bens públicos e/ou coletivos; e uma forma de pensar a política pela produção de inimigos. 

A homogeneização das paisagens pelas commodities, enfim, também atinge as agendas culturais, a comida, os comportamentos e as narrativas hegemônicas que circulam. Afinal, o “Agro é Pop” e patrocina boa parte dos mecanismos de produção simbólica no Brasil.

Distribuição geográfica do interesse pelamúsica sertaneja e o mapa do segundo turno das eleições 2022. Fonte: Brasil em Mapas (2021) e VEJA O RESULTADO... (2022). Crédito: Amazônia Latitude Press.

Distribuição geográfica do interesse pela música sertaneja e o mapa do segundo turno das eleições 2022. Fonte: Brasil em Mapas (2021) e VEJA O RESULTADO… (2022). Crédito: Amazônia Latitude Press.

É pelos caminhos dessas frentes econômicas, socioculturais e subjetivas, portanto, pelo espaço, que analisamos o autoritarismo brasileiro. O que não é muito usual, pois geralmente o autoritarismo é pensado a partir de conceitos – importados de outras experiências históricas geralmente europeias – que, por sua vez, são aplicados à realidade brasileira. Ressaltamos que tais exercícios são fundamentais, mas escolhemos seguir outro caminho, muito inspirados na genealogia do poder de Michel Foucault. 

Invertendo a análise, a experiência do autoritarismo brasileiro e suas formas de produção de subjetividades não foram previamente encaixadas em teorias. A escolha pelo espaço e por uma análise ascendente que vai das extremidades ao centro, de onde o autoritarismo se torna capilar até a compreensão de sua racionalidade estrutural, permitiu-nos dizer que existem geografias que sustentam a experiência autoritária brasileira e suas formas de produção de subjetividade. O espaço, portanto, tem muito a dizer à teoria crítica contemporânea.

Desafios e contradições no governo atual

Mas, novamente, é necessário retornar ao contexto em que esse livro foi escrito para entendermos o seu significado hoje. Como dissemos anteriormente, essa reflexão foi construída logo após a derrota nas urnas de Jair Bolsonaro. Estávamos diante da abertura de um novo ciclo político progressista, na figura de um governo de coalizão ampla. Tínhamos a oportunidade histórica de enfrentar o Bolsonarismo não apenas nos tribunais, mas também em suas bases espaciais. Entretanto, quase três anos dessa nova experiência de governo e temos seguidamente os maiores Planos Safra da história, remunerando o agronegócio como nunca antes nesse país. Temos a retomada do Plano de Aceleração do Crescimento projetando infraestruturas do colapso em direção aos nossos biomas para garantir a fluidez dos mercados de commodities, sem contar na insistência da exploração de petróleo na foz do Amazonas. Ou seja, continuamos a escolher as commodities em detrimento da vida. 

Por outro lado, também não conseguimos construir formas alternativas de sociabilidade nas periferias e nos rincões desse país que combatem o negacionismo e o empreendedorismo de si, fermentado pela fé evangélica, para reforçar os laços territoriais, comunitários e sentidos de pertencimento com aquilo que ainda nos faz vivos.

Tudo isso nos indica que o autoritarismo brasileiro continua sendo ativado pelas forças que deveriam combatê-lo e que, por isso, a prisão de Bolsonaro e de sua turma não nos tranquiliza diante do assombro. Devemos, sim, ressaltar a importância histórica do julgamento da trama golpista, pois foi a primeira vez na história que levamos ao banco dos réus coronéis, um ex-presidente e quem usou das instituições para perpetrar ações autoritárias. Isso tirou da escuridão crimes cometidos em nossos períodos ditatoriais, enfrentou nossos silêncios históricos e fez lembrar o que a lei da anistia de 1979 nos impôs esquecer. 

Julgamento de Bolsonaro e de mais sete réus da trama golpista no STF. Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil.

Julgamento de Bolsonaro e de mais sete réus da trama golpista no STF. Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil.

Foi, também, a realização de uma justiça histórica contra os responsáveis por milhões de mortes na pandemia, pelo ecocídio de nossos biomas e pela disseminação da intransigência e da intolerância na sociedade brasileira. Porém, assim como ainda estão soltos a maioria de fazendeiros e empresários do agro que financiaram a tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023, os agentes religiosos que a propagaram e a milícia digital que a deu escala, ainda estão ativos os negócios que sustentam o autoritarismo brasileiro. E é preciso constatar que esses negócios seguem pela escolha política e econômica da nossa esquerda institucional de continuar fazendo a roda da economia girar pela expansão violenta e destrutiva do mercado de commodities.

A luta por uma vitória política e a esperança em outras geografias

Terminamos o livro Geografias do Bolsonarismo afirmando que transformaríamos a vitória eleitoral contra Jair Bolsonaro em vitória política se construíssemos um movimento radical de desmobilização das geografias hegemônicas que ainda persistem na sociedade brasileira, interditando a vida e permitindo que relações e subjetividades autoritárias se proliferem. Infelizmente, além da vitória eleitoral, comemoramos apenas a recente vitória judicial que criminaliza a tentativa de golpe de Estado. Todavia, a vitória política do enfrentamento das engrenagens espaciais do autoritarismo brasileiro ainda está por se construir.

Mas, ao fim do livro, também lembramos os caminhos de construção dessa vitória política que, em nossa perspectiva, seguem absolutamente urgentes e necessários. Falávamos da necessidade de colocarmos os territórios atacados pelas geografias do bolsonarismo no centro de uma nova imaginação política para o Brasil. Isso porque esse país sempre foi pensado a partir de suas regiões de fronteira, sempre se definiu por suas frentes econômicas e, nesse sentido, nunca experimentou ser pensado por aquelas e aqueles que estão no caminho dos processos de mercantilização da natureza e da vida, por suas lutas, resistências e existências. É, portanto, urgente pensar o Brasil a partir e com a diversidade étnica, linguística, cosmológica e cultural de seus povos e não, como até agora foi feito, contra eles.

É urgente pensar o Brasil a partir e com a diversidade étnica, linguística, cosmológica e cultural de seus povos e não, como até agora foi feito, contra eles. Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil.

É urgente pensar o Brasil a partir e com a diversidade étnica, linguística, cosmológica e cultural de seus povos e não, como até agora foi feito, contra eles. Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil.

Creio que essa lembrança final permanece, principalmente se lembrarmos que a catástrofe ambiental e climática que hoje experimentamos está ancorada na racionalidade das geografias que sustentam o bolsonarismo. Então, o que a “queda do céu” – como definiria David Kopenawa e Bruce Albert (2016)4KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu. Palavras de um xamã Yanomami. Trad. Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. – mostra-nos é que não é possível pensar soluções a partir dos povos da mercadoria, que somos nós, se não continuaremos tratando essa catástrofe como oportunidade de mercado, como faz o capitalismo que se diz verde. 

O que, portanto, esse tempo que vivemos nos alerta é que os saberes e práticas que sempre tratamos como locais – os saberes e práticas de povos e comunidades em todos os biomas que ainda caminham com e não contra a vida, com e não contra a comunidade, com e não contra o metabolismo de Gaia – nunca foram locais, pois sempre sustentaram o equilíbrio climático do planeta. 

Essas outras geografias de Brasis esquecidos e historicamente violentados apontam-nos horizontes radicalmente diferentes da racionalidade que hoje mata o mundo e sustenta nosso autoritarismo. É por elas e com elas que conseguiremos imaginar, sonhar e sentir outras formas de usar, organizar, pertencer e pensar o mundo com e não contra a vida.

Capa "Geografias do Bolsonarismo", de Bruno Malheiro. Crédito: Amazônia Latitude Press.Geografias do Bolsonarismo: entre a expansão das commodities, do negacionismo e da fé evangélica

Autor: Bruno Malheiro

Ano: 2023

Páginas: 96

Idioma: Português

Editora: Amazônia Latitude Press



Bruno Malheiro é escritor, professor, roteirista e músico. É professor da Universidade Federal do Pará (UFPA), doutor em Geografia, autor dos livros “Horizontes Amazônicos” e “Geografias do Bolsonarismo”, co-roteirista do filme “Pisar suavemente na Terra” e autor do álbum musical “Segura o Céu”.

Edição: Juliana Carvalho
Montagem da página: Alice Palmeira
Direção: Marcos Colón

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