“Volta na segunda-feira”: por que Roraima é o estado com mais feminicídios no Brasil?

Há mais de 10 anos, Roraima lidera rankings de violência contra a mulher devido à ineficiência estatal. Mas aos poucos, iniciativas públicas têm revertido o quadro

Campanha Não é Não no Carnaval. Foto: Jader Souza
Campanha Não é Não no Carnaval de Roraima, realizada em conjunto com Ministério Público e Assembleia Legislativa do Estado. Foto: Jader Souza/ALE-RR
Campanha Não é Não no Carnaval. Foto: Jader Souza

Campanha Não é Não no Carnaval de Roraima, realizada em conjunto com Ministério Público e Assembleia Legislativa do Estado. Foto: Jader Souza/ALE-RR

Se Aline Mota*, 49 anos, suspeitava que o marido estivesse bebendo na rua enquanto fazia plantão como enfermeira, pedia ao porteiro do hospital que avisasse que ela não estava. Se a mulher estivesse em casa, saía com os três filhos do casal rumo à casa de sua mãe e dormiam lá. É que a bebida aflorava o lado agressivo do homem com quem viveu por duas décadas, entre três idas e vindas.

A preocupação de Aline Mota tem fundamento: o Atlas da Violência 2025. Publicado este ano, o documento produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) junto com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, aponta Roraima, onde ela vive, no topo do ranking nacional de feminicídios em proporção. 

A taxa é de 10,4 mortes, quase o triplo da média nacional (3,5). Logo abaixo vêm outros dois Estados nortistas, Rondônia e Amazonas, empatados com a Bahia. Cada um teve 5,9 mortes por 100 mil habitantes.

No ranking de violência no geral, as notícias não são mais otimistas: Roraima é o quinto mais violento do país, com 35,9 homicídios por 100 mil habitantes. De novo a Região Amazônica encabeça a lista: Amapá é o primeiro (57,4 homicídios por 100 mil habitantes) e Amazonas é o quarto (36,8). 

Em julho deste ano, o caso de uma mulher de 29 anos do povo kokama, detida em Santo Antônio Içá, há aproximadamente 1500 KM de Manaus, ganhou repercussão nacional. A indígena foi presa em uma cela masculina e sofreu violências sexuais por nove meses pelos agentes do Estado. Ela estava ao lado do filho, recém-nascido. 

O pódio da violência é dividido com a Bahia (43,9) e Pernambuco (38), no Nordeste. Com a média nacional de 21,2 homicídios, Roraima ainda está 14,7 pontos acima.

Em 2023, o último ano pesquisado para compor o relatório, 31 mulheres haviam sido assassinadas no Estado. Dessas:

  • 12 eram indígenas, 15 eram pardas e 4 não tiveram a cor especificada. 
  • 19 sofreram violência física, 5 delas com inclusão de violência sexual.
  • 14 delas tiveram os filhos como testemunhas do abuso sofrido.
  • 4 sofreram violência patrimonial (retenção ou destruição de suas posses).

Em 2023, alguns casos repercutiram, como o de Angelita Prororita Yanomami, de 35 anos, ex-esposa do líder Davi Kopenawa, com quem teve uma filha. Angelita, que trabalhava como intérprete de sua língua na Casa de Apoio à Saúde Indígena (Casai), em Boa Vista, e iria retornar à sua comunidade após se formar em Odontologia, foi encontrada morta próxima ao Rio Branco, na capital, após ficar um  mês desaparecida. Um ex-vigilante foi considerado suspeito, mas até hoje o caso não foi concluído.

Além dela, Juliane Feitosa de Araújo, de apenas 24 anos, foi morta a tiros em frente à sua casa na periferia de Boa Vista, possivelmente pelo ex-cunhado e outros dois homens. Antônia Araújo Sousa, 52 anos, também foi assassinada com um tiro na porta de sua casa, na periferia da capital roraimense.

Antônia tinha uma filha com o ex-senador Telmário Mota (MDB), conhecido pelos roraimenses como “o doido” por sempre se envolver em polêmicas. A filha acusava o pai de tê-la estuprado em 2022, quando tinha 17 anos, e a mãe iria testemunhar a seu favor. Telmário Mota foi preso pela acusação de estupro e como suspeito de mandar matar a ex-companheira três dias antes dessa audiência. Recentemente, ele conseguiu a prisão domiciliar.

Aline não entrou para a estatística, mas chegou perto: o marido a agrediu fisicamente diversas vezes, no que ela revidou sempre que pôde. “Eu não ficava quieta porque não sou dessas que quer apanhar do marido e não revidar”, relata.

Claro que não foi sempre assim. “A gente começa um relacionamento sendo bem tratada, com carinho e tudo. O início do meu casamento foi às mil maravilhas. Depois ele começou a mostrar quem realmente era”, recorda Aline.

A enfermeira tinha 16 anos quando conheceu o ex-marido, sendo ele um pouco mais velho. Eles se casaram não muito depois e a primeira filha do casal nasceu em 1995.

A máscara do parceiro começou a cair com críticas cada vez mais frequentes. Sempre que bebia, “simplesmente se transformava”. Ele chegava a procurá-la no seu emprego no hospital, embriagado. “Era uma situação muito chata e eu não gostava dessas coisas em ambiente de trabalho”, lamenta.

A mulher pediu divórcio pelo menos três vezes, mas voltou devido à insistência do homem e às suas promessas de mudança. Na terceira vez em que reataram, ela ficou grávida da filha mais nova. 

Diante do quadro, ela deveria se conformar e manter a família a qualquer custo? A escolha foi outra. “Ele começou a querer vir para cima de mim”. Na última vez em que tentou agredi-la, o único filho homem do casal, na época pré-adolescente, entrou no meio deles durante a discussão e levou o soco que acertaria a mãe. 

“Aí não prestou. Eu não ia deixar meu filho passar por essa situação e não fazer nada. Foi quando entrei em contato com a Justiça e abri um requerimento pedindo a separação, porque não dava mais”, desabafa. 

Felizmente, para Aline a história não teve um final trágico: ela teve o apoio da família e dos amigos, continuou na casa com os três filhos e hoje cada um deles está bem encaminhado profissionalmente. Ela, que poucos anos depois viu o ex-marido falecer e sobreviveu a uma internação por Covid-19 durante a Pandemia, ganhou uma nova chance de viver, agora com dignidade.

Aline, hoje, fala com um olhar de fora: “Sofri muito, mas hoje ninguém pisa em cima de mim, de jeito nenhum. Antigamente a gente não tinha tanto apoio, mas hoje tem vários caminhos para uma mulher sair dessa situação. Espero que as mulheres de hoje se abram mais. É muito chato e difícil viver uma relação abusiva: a gente pensa nos filhos [para continuar com o parceiro], mas temos que pensar na gente, também. A lição que aprendi é que mulher nenhuma deve se sujeitar à situação de violência, seja verbal ou prática.”

Campanha Não é Não no Carnaval. Fonte: Jader Souza/AL Roraima.

Campanha Não é Não no Carnaval. Foto: Jader Souza/ALE-RR.

Ineficiência do Estado explica ranking

Não é de hoje que Roraima tem a maior proporção de violência contra a mulher no Brasil: ao longo de 10 anos (2006 a 2016), o Estado quase dobrou o número de feminicídios, de acordo com o Mapa da Violência, que usa dados do Ministério da Saúde. Em números absolutos, 13 mulheres foram assassinadas em 2006, e 25 em 2016.

De 2013 a 2023, 344 mulheres foram vítimas de feminicídio, sendo que 53 delas morreram somente em 2018 — ano em que o Estado registrou 21,1 feminicídios a cada 100 mil habitantes. 

Outro relatório, o da ONG internacional Human Rights Watch, indicou que entre 2010 e 2015 os homicídios no Estado aumentaram 139%. Isso significa 11,4 mortes para cada 100 mil mulheres, contra 4,4 da média nacional. 

Roraima está em primeiro lugar no ranking da taxa de homicídios do Brasil, com 10 assassinatos por cada 100 mil habitantes. A taxa é igualmente assustadora, pois é maior do que a média nacional que ficou em 4,5 assassinatos por 100 mil habitantes.

Mas por que esses dados tão alarmantes? Os pesquisadores estiveram em vários locais do Brasil em 2013, durante meses, e perceberam que em Roraima o principal gargalo era sistêmico.

A Polícia Civil não tinha capacidade de investigar todos os casos abertos; as delegacias não dispunham de salas privativas para colher os depoimentos (as mulheres tinham que contar suas histórias à vista de todos); e os agentes não eram treinados para acolher as queixas com eficiência. Preferiam, muitas vezes, nem registrá-las, e sim direcionarem as vítimas para a Delegacia Especializada de Atendimento à da Mulher, ainda que ela estivesse fechada. Naquela época, essa Delegacia não abria à noite e nem aos finais de semana, justamente nos momentos em que mais agressões acontecem no Brasil

Esperança: Rede de Acolhimento Estadual conscientiza mulheres e também homens

Na época da visita, a ONG Human Rights Watch deixou uma série de sugestões para o Governo de Roraima. Felizmente, várias delas foram seguidas: a Lei 14.541/23 determinou em 2023 que todas as Delegacias da Mulher sejam 24 horas e com salas privativas. No ano seguinte, a Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (DEAM) passou a cumprir a Lei

Em 2018, o Estado inaugurou a Casa da Mulher Brasileira, um anexo da DEAM que conta com uma equipe multidisciplinar (como psicólogas e assistentes sociais) e um abrigo para as vítimas que precisam se afastar de seus algozes. 

Outro serviço implantado é o do Centro Humanitário de Apoio à Mulher (Chame), vinculado à Secretaria Especial da Mulher da Assembleia Legislativa de Roraima (SEM/ALE-RR). Fundado em 2009, o Chame já atendeu mais de 10 mil pessoas recebendo denúncias e oferecendo apoio jurídico, social e psicológico para vítimas de violência. Em 2016, ele passou a ter contato 24 horas pelo WhatsApp, recebendo mensagens de outras 2790 mulheres. 

Chame realiza palestra sobre violência doméstica e Familiar na Escola em colégio estadual no município de Cantá. Foto: Nonato Sousa/ALE-RR.

Chame realiza palestra sobre violência doméstica e Familiar na Escola em colégio estadual no município de Cantá. Foto: Nonato Sousa/ALE-RR.

Segundo informações da ALE-RR:

  • Mais de 60% das mulheres que buscaram o Chame tanto presencialmente quanto pelo WhatsApp em 2024 se declararam pardas; 22,7% brancas; 5,2% negras; 3,8% indígenas e 2,4% amarelas.
  • Houve um aumento de 83,65% na procura entre 2023 e 2024.
  • 70% delas precisaram de apoio psicológico.
  • 68% precisaram também de apoio jurídico.
  • 65% precisaram de assistência social.
  • Menos de 2% já falaram com psicanalistas.

Uma dessas psicanalistas é Janaína Nunes. Ela explica que, dentro do Chame, existem profissionais para cada um desses atendimentos, que são personalizados para que se entenda a situação específica da denunciante. 

A equipe participa de constantes capacitações técnicas (conhecimento de produtos e procedimentos) e de habilidades interpessoais (comunicação, empatia, inteligência emocional), incluindo simulações práticas, além de atuar em parceria com outras instituições. “Esse conjunto garante um atendimento eficaz, humano e alinhado à cultura organizacional”, explica a psicanalista.

O Centro recebe denúncias que abrangem vários tipos de violência – física, psicológica, moral (calúnia, difamação ou injúria que afetam a sua dignidade), patrimonial (destruição, retenção ou controle dos bens, documentos e recursos financeiros da vítima) e sexual (estupro, abuso ou qualquer forma de coação sexual). 

“Muitas vítimas atendidas pelo Chame desistem das denúncias por dependência emocional ou financeira, pressão da família, cansaço com o processo judicial, falta de apoio, medo de represálias. Por isso, oferecemos orientação jurídica, acolhimento psicológico, encaminhamentos necessários para proteção e apoio, e escuta humanizada e sem julgamentos, que respeita seu tempo e decisões. Toda equipe é capacitada para atender casos leves aos mais graves, de forma que essa vítima tome as rédeas de sua própria vida. Esse conjunto de apoios dá à mulher a confiança necessária para enfrentar o processo e buscar justiça”, detalha Janaína.

O trabalho tem crescido tanto que, além das roraimenses, venezuelanas que vivem no Estado e até mulheres que nunca estiveram por lá já buscaram o WhatsApp do serviço, que é o (95) 98402-0502. Elas tiveram o atendimento ofertado pelos profissionais.

Perguntada por que a maioria das denúncias vêm de pardas e brancas, Janaína Nunes acredita que as negras acabam “naturalizando agressões por vivenciarem racismo e machismo cotidianamente, demorando mais para identificá-las como injustas ou abusivas”.

É por isso que no Centro há projetos como o Grupo Terapêutico Flor de Lótus, paralelamente aos atendimentos individuais, para resgatar a autoestima dessas mulheres. 

Janaína Nunes se lembra de uma vítima em especial, que sofreu violência por mais de 30 anos e só conseguiu romper o ciclo depois de ter entrado no grupo. “Hoje ela está bem e com nova mentalidade”, comemora.

O Chame faz parte de uma rede de acolhimento formada por vários órgãos estaduais. Verlânia de Assis, delegada titular da Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher, enumerou alguns deles:

  • Dentro da Maternidade e do Hospital Infantil em Boa Vista, há um sobreaviso para que policiais entrem lá para registrarem boletim de ocorrência e/ou requererem um exame pericial de uma paciente que tenha sofrido violência.
  • A Secretaria de Estado do Trabalho e Bem-Estar Social (Setrabes) oferece programas de capacitação financeira para mulheres dependentes de seus agressores.
  • O Juizado de Violência Doméstica tem desenvolvido campanhas para que busquem a medida protetiva, e a Defensoria Pública tem resolvido questões cíveis para amenizar os conflitos do casal. 
  • A Polícia Civil tem feito plantões 24h para diminuir a falta de registros de ocorrências e intensificar investigações. Tem, ainda, tentado acompanhar as vítimas que procuraram o 190 e realizado campanhas preventivas. 
  • Diversas ONGs que chegaram à Roraima devido à migração venezuelana atuam na capacitação psicossocial e financeira de mulheres, fortalecendo a ação do Governo do Estado, que também tem feito campanhas dentro das comunidades indígenas para diminuir ocorrências. 
  • Na Casa da Mulher Brasileira há assistentes sociais e psicólogas, além de alojamento provisório. 
  • Nas suas campanhas preventivas em escolas e empresas, o Governo também se direciona aos homens.

A delegada acredita que essas medidas refletiram no aumento expressivo nos registros. Questões peculiares de Roraima, como o garimpo e a imigração venezuelana, também avolumam os números. O garimpo, em particular, tinha sido apontado pelo Atlas da Violência 2025 como o principal fator para o alto índice de feminicídios no extremo Norte.

Mas, se o Atlas utilizou dados do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde, a Secretaria de Segurança Pública de Roraima questiona o fato de o Ministério da Justiça ter colocado o Estado em primeiro lugar na redução de homicídios no país, chegando a 55% de queda nos feminicídios. 

O número de viaturas da PM subiu de 4 em 2018 para 90 em 2025, alcançando todos os municípios e atuando em conjunto com a Força Nacional, cuja atuação local se explica pela suspeita da presença de membros de facções entre os refugiados da Venezuela.

25-07-2025 - Arraial-Casai [casa da saúde indígena]-Chame: Foto Alfredo Maia/ALE-RR

Chame promove conscientização de indígenas no Arraiá da Casaí. Foto: Alfredo Maia/ALE-RR

“Temos pessoas vivendo em extrema vulnerabilidade aqui”, afirma Verlânia de Assis. “Mas a violência contra a mulher alcança todas as classes e etnias. De uma forma geral, ainda é a mulher brasileira, empoderada economicamente e de 20 a 40 anos quem mais nos procura”, complementa.

Para que a Rede alcance também os grupos mais vulneráveis, o Estado segue integrando-a, “para que ela funcione e para que a mulher tenha segurança em nos procurar, se conscientize e saia dessa experiência traumática”, explica.

Atualmente, com uma mudança na Lei 11.340/06, a Maria da Penha, a mulher não pode mais desistir de denúncias de lesão corporal e ameaça depois de recebidas pelo Sistema de Segurança Pública, o que também influencia na eficiência das investigações. 

“O que leva a mulher a querer desistir é a falta de apoio familiar ou de amigos: ela se sente sozinha e vulnerável, quer que a família permaneça unida e acredita na melhora do agressor. Tem a dependência econômica que às vezes é determinante no desejo dela de reatar o relacionamento”, pontua a delegada titular. 

É por isso que as capacitações citadas também buscam conscientizar o homem de forma geral, mas principalmente aquele que já é infrator. 

“Esse trabalho tem se revelado de grande importância para que ele tenha consciência da sua responsabilidade com os filhos e com a mulher. Se é só ela quem cuida do lar, ela vai errar e se estressar com a sobrecarga e isso vai lhe gerar um desequilíbrio emocional. O que temos percebido em todo o processo é que a mulher não quer punir o homem, só quer que ele não mais a ofenda ou constranja. Conscientizamos o homem para que ele entenda que seu comportamento tem consequências jurídicas, como perder o seu cargo e ter uma série de restrições. E também que esse homem precisa ver essa mulher como um sujeito com direitos, que deve ser respeitada, para que ele possa contribuir com sua família e resolver seus conflitos sem usar violência” finaliza. 

*Nome alterado a pedido da entrevistada.

Texto: Nayra Wladmila
Revisão e edição: Juliana Carvalho
Montagem da página: Alice Palmeira
Direção: Marcos Colón

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