Quem alimenta Belém está nas margens das calçadas da cidade

Mesmo com o calor extremo, urbanização hostil e invisibilidade social, vendedoras de comida de rua resistem cozinhando e preservando o sabor da Amazônia

Elisete Soares, vendedora de comida de rua na área comercial da capital paraense. Foto: Cozinhando no Calor de Belém, antes da chuva/Divulgação.
Elisete Soares, vendedora de comida de rua na área comercial da capital paraense. Foto: Cozinhando no Calor de Belém, antes da chuva/Divulgação.
Elisete Soares, vendedora de comida de rua na área comercial da capital paraense. Foto: Cozinhando no Calor de Belém, antes da chuva/Divulgação.

Elisete Soares, vendedora de comida de rua na área comercial da capital paraense. Foto: Cozinhando no Calor de Belém, antes da chuva/Divulgação.

Ao caminhar por Belém, não é difícil encontrar alguma barraquinha de comida. Como uma cidade tipicamente amazônica, os aromas dos temperos da região tomam conta das ruas da capital. É quase um convite irresistível, que agrada o olfato e, principalmente, o paladar. Na maioria das vezes, todo esse fervilhão de sabores é preparado por mulheres, que trabalham entre o fogo do fogareiro e o calor do asfalto

As vendas são feitas nas calçadas estreitas, muitas vezes sob sol extremo ou debaixo de chuvas pesadas. Além de carregarem nas mãos o saber tradicional da cozinha amazônica, também enfrentam, todos os dias, as pressões da urbanização acelerada e os impactos das mudanças climáticas. 

Esta reportagem embarcou no roteiro do  documentário Cozinhando no Calor de Belém, antes da chuva, da pesquisadora e cozinheira Auda Piani, um verdadeiro retrato do cotidiano de quem cozinha para viver  e para manter viva a cultura alimentar da Amazônia urbana.

Auda Piani, cozinheira e pesquisadora. Foto: Cozinhando no Calor de Belém, antes da chuva/Divulgação.

Auda Piani, cozinheira e pesquisadora. Foto: Cozinhando no Calor de Belém, antes da chuva/Divulgação.

Cozinhando entre fogo e o asfalto

As barracas de comida de Belém não são novidade. Segundo a pesquisadora Auda Piani, muitas delas existem há mais de 40 anos, instaladas em pontos históricos da cidade, como as transversais da Avenida Presidente Vargas, no bairro da Campina. 

De acordo com a pesquisa, houve poucas mudanças na dinâmica de preparo dos alimentos. O que mudou, na verdade, foi o entorno: o espaço urbano ficou mais hostil. Com calçadas estreitas, trânsito intenso e o aumento do calor extremo, as vendedoras têm cada vez menos espaço e condições para exercer seu trabalho.

“Elas usam fogareiros ali mesmo, em pequenos cantos entre o meio-fio e os carros. Antes era mais fácil chegar e montar sua barraca. Agora, elas foram literalmente jogadas para as margens”, diz Auda. 

A situação piora com o avanço das mudanças climáticas. Apesar das chuvas ainda frequentes, o calor se intensificou. “As mulheres falam no filme: ‘chuva é intensa, mas a gente sobrevive’. O calor, muitas vezes, é pior”, relata a diretora do documentário. 

Elas usam fogareiros ali mesmo, em pequenos cantos entre o meio-fio e os carros. Foto: Cozinhando no Calor de Belém, antes da chuva/Divulgação.

Elas usam fogareiros ali mesmo, em pequenos cantos entre o meio-fio e os carros. Foto: Cozinhando no Calor de Belém, antes da chuva/Divulgação.

Entre os depoimentos registrados, está o de Elisete Soares, vendedora de comida de rua na área comercial da capital paraense. A trabalhadora autônoma revela o cotidiano duro e ao mesmo tempo cheio de afeto com o próprio fazer. “Eu já me acostumei [com o calor], mas é difícil pra quem não é acostumado. A parte aqui que nós estamos trabalhando, nós estamos abençoadas porque aqui venta bastante. Às vezes me atrapalha porque leva todo o meu gás. É muito vento, mas é muito calor”, conta. 

Ela também lembra os riscos que enfrenta todos os dias no pequeno espaço onde monta sua estrutura. “Devido esse lugar ser muito apertado, eu já tive duas queimaduras graves nas duas mãos. Uma das queimaduras foi em janeiro, no dia do aniversário de Belém”, disse. 

Natural do interior do estado, Elisete começou a trabalhar na capital ainda criança. Filha de agricultores e com muitos irmãos para dividir o pouco alimento que chegava à mesa, ela, assim outras incontáveis meninas, deixaram as suas casas para trabalhar na cidade grande.

“Eu vim embora do interior com 12 anos. Vim para trabalhar em casa de família, como babá. Quando eu cresci mais um pouco, me botaram para cozinha. Aí eu fui aprendendo. Eu já trabalhei de tudo um pouco, até professora eu já fui, mas o que eu gosto, mesmo, é de cozinhar”, afirma com orgulho.

Elisete apontado queimaduras. Foto: Cozinhando no Calor de Belém, antes da chuva/Divulgação.

Elisete apontado queimaduras. Foto: Cozinhando no Calor de Belém, antes da chuva/Divulgação.

Gastronomia invisível: Quem realmente alimenta Belém

Na pesquisa, Auda Piani revela que apesar do protagonismo das mulheres na alimentação cotidiana, elas continuam invisíveis no mundo da gastronomia. Segundo ela, embora Belém seja reconhecida como Cidade Criativa da Gastronomia, apenas os grandes chefes homens são lembrados. 

“Na alta gastronomia, aparecem mais os homens. Mas na vida real, são as mulheres que protagonizam esse fazer diário, esse saber que vem do cuidado e do amor. São elas que cuidam do caribé do doente, que alimentam as crianças. São elas que antes de saírem de casa para passar o dia todo cozinhando na rua, deixam a comida pronta para os filhos”, afirma Auda. 

O saber culinário, segundo a pesquisadora, é também um modo de cuidar do outro e de si. E vai além da receita: é memória, cultura e resistência. Esse saber, no entanto, está sob ameaça. A alimentação tradicional amazônica vem sendo impactada por uma lógica de produção predatória e pela perda de acesso a alimentos da floresta. O tucumã, por exemplo, cada vez mais procurado por indústrias de cosméticos, começa a faltar nas comunidades.

Na vida real, são as mulheres que protagonizam esse fazer diário, esse saber que vem do cuidado e do amor. Foto: Marcos Colón/Amazônia Latitude.

Na vida real, são as mulheres que protagonizam esse fazer diário, esse saber que vem do cuidado e do amor. Foto: Marcos Colón/Amazônia Latitude.

“Quando tudo vai para a indústria, falta para quem depende da floresta para comer. Os produtos orgânicos são produtos que poucas pessoas têm acesso, são mais caros e mais raros. Já se tornou comum trocar o peixe ou o camarão (as proteínas tradicionais para consumir com açaí) pela mortadela. E isso acontece pela falta de acesso.  Os ultraprocessados, estão mais baratos do que uma fruta, por exemplo, por conta dos incentivos fiscais”, conta. 

Para Auda, é urgente reconhecer que a Amazônia não é uma fonte inesgotável de recursos. “Existe uma falsa ideia de floresta infinita, de fartura para todos. Mas a produção, com essa lógica predatória, alimenta poucos. Muitas comunidades vivem com escassez. Isso precisa ser dito com clareza”, afirma. 

Ela também critica o marketing em torno da Amazônia que tenta vendê-la como paraíso verde enquanto ignora as realidades de quem vive nela. No seu livroEntre Panelas, Memórias e Sentidos” (2022), Auda mostra que cozinhar é também uma forma de enfrentamento. Um ato político diante da desigualdade, da perda de território e da invisibilidade.

Apesar do protagonismo das mulheres na alimentação cotidiana, elas continuam invisíveis no mundo da gastronomia. Foto: Cozinhando no Calor de Belém, antes da chuva/Divulgação.

Apesar do protagonismo das mulheres na alimentação cotidiana, elas continuam invisíveis no mundo da gastronomia. Foto: Cozinhando no Calor de Belém, antes da chuva/Divulgação.

Os saberes que não cabem no currículo

A pesquisadora também defende que os saberes tradicionais da Amazônia não cabem dentro dos limites da escola formal. E apenas quem vive e pratica esse conhecimento tem autoridade para falar sobre ele. “Eu registro na minha pesquisa, mas vou ouvir de quem sabe. Eu sou marajoara, sou cozinheira, também sou parte disso. Então consigo entender esse saber por dentro”, diz. 

Ela lembra o exemplo dos Yanomami, que cultivam cogumelos e sabem distinguir os venenosos pela textura e pela cor. “Isso é conhecimento acumulado por gerações. São tecnologias seculares, como a de fazer farinha. A ciência está aí também, só que passa por outros caminhos, pela convivência, pela transmissão direta, pela vivência”, afirma.

Nas ruas quentes de Belém, entre o barulho dos ônibus, a fumaça do fogareiro e o cheiro do peixe frito, mulheres como Elisete seguem cozinhando. Não por escolha fácil, mas por sobrevivência  e por gosto, como ela mesma faz questão de lembrar.

É nesse gosto que está a força de um saber que resiste, mesmo sob o aperto das calçadas, do sol forte e da chuva torrencial. E é esse saber, passado de mãe para filha, aprendido na prática, que ainda sustenta a cidade. Cozinhar, para essas mulheres, não é só ofício. É resistência.

Texto: Elielson Almeida
Revisão e edição: Juliana Carvalho
Montagem da página: Alice Palmeira
Direção: Marcos Colón

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