Desburocratizar ou passar a boiada? Entenda os verdadeiros riscos do PL da Devastação

Com a Licença por Adesão e Compromisso, o Brasil deixa de prevenir desastres e passa a agir depois que eles acontecem

Senador Davi Alcolumbre, autor da emenda para acelerar o licenciamento de “projetos estratégicos”. Foto: Antônio Cruz/Agência Brasil.
Senador Davi Alcolumbre, autor da emenda para acelerar o licenciamento de “projetos estratégicos”. Foto: Antônio Cruz/Agência Brasil.
Senador Davi Alcolumbre, autor da emenda para acelerar o licenciamento de “projetos estratégicos”. Foto: Antônio Cruz/Agência Brasil.

Senador Davi Alcolumbre, autor da emenda para acelerar o licenciamento de “projetos estratégicos”. Foto: Antônio Cruz/Agência Brasil.

A alcunha de PL da Devastação já anuncia o gosto amargo do que o Projeto de Lei nº 2.159/2021, aprovado na Câmara dos Deputados na madrugada desta quinta-feira, 17, representa.

Pensado a partir da perspectiva da mineração e do agronegócio, o texto atropela as comunidades tradicionais e ameaça de forma direta biomas como Amazônia, Cerrado, Pantanal e Caatinga.

Prestes a sediar a COP30, o Brasil segue na contramão do discurso que apresenta o país como o “protetor da Amazônia” e dos compromissos assumidos a nível internacional no combate às mudanças climáticas.

Para o filósofo e escritor Ailton Krenak, uma das mais importantes lideranças indígenas da atualidade, “não é uma surpresa que esse Congresso de latifundiários tenha declarado que não precisa [de] licença ambiental”.

Infográfico indicando o processo de tramitação do PL. Arte: Fabrício Vinhas/Amazônia Latitude.

Infográfico indicando o processo de tramitação do PL. Arte: Fabrício Vinhas/Amazônia Latitude.

O Projeto de Lei nº 2.159/2021, que teve origem em 2004, também na Câmara dos Deputados, tem como uma de suas principais mudanças a questão do autolicenciamento ambiental.

Atualmente, o licenciamento é autorizado pelo órgão competente, que também acompanha a implantação dos empreendimentos que utilizam recursos naturais, ou mesmo que possam degradar o meio ambiente.

Para funcionar, essas atividades de agronegócio de grande porte, de mineração e indústrias precisam de Licença Prévia (LP), Licença de Instalação (LI) e Licença de Operação (LO).

Agora, sobre a camuflagem da desburocratização, batizada como Licença por Adesão e Compromisso (LAC), o empreendedor pode simplesmente fazer uma autodeclaração sobre o cumprimento das normas ambientais.

Assim, ele consegue a licença de forma quase imediata. Sem uma análise prévia, órgãos como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e as Secretarias de Meio Ambiente deixam de atuar na prevenção de desastres ambientais e passam a agir depois que eles acontecem.

Destinada a atividades de baixo ou médio potencial poluidor/degradador, a LAC compactua com a perseguição aos povos tradicionais, ameaçados diariamente nos conflitos por terras e bens naturais.

A grande realidade é que mesmo essas atividades, principalmente quando somadas, representam um risco significativo. Com isso, o Estado se isenta de suas responsabilidades, transferindo-as para o empreendedor.

Também são evidentes as consequências para a segurança jurídica, tendo em vista que a tendência é gerar mais processos judiciais. Em um cenário onde o rigor e a fiscalização preventiva são drasticamente reduzidos, o risco de desastres nas mais diferentes escalas, como enchentes, deslizamentos e poluição das águas, é multiplicado. Com isso, a flexibilização do licenciamento pode ter altos custos econômicos e sociais.

O advogado e assessor jurídico do Conselho Indígena de Roraima (CIR), Ivo Makuxi, afirma que a Lei “vem para flexibilizar a Constituição em prol dos direitos econômicos e projetos sob o argumento de desenvolver o país, o que eles chamam de ‘progresso’. O que vai de encontro à própria Constituição, que assegura que todos os brasileiros têm direito a um ambiente ecologicamente equilibrado e essencial à qualidade de vida (Artigo 225). O que envolve também a demarcação das TI e a preservação especialmente da Amazônia”.

Ailton Krenak em frente ao Rio Doce. Ele usa camiseta cinza e uma faixa na cabeça, enquanto olha para a esquerda, de perfil.

Ailton Krenak em frente ao Rio Doce. Foto: Marcos Colón/ Amazônia Latitude

Para Ailton Krenak, o que se projeta “está estritamente relacionado com essa indústria agressiva, essa agroindústria. A gente não tem uma tecnologia de indústria no Brasil, a gente tem uma agroindústria. Então, tudo está relacionado: petróleo, insumos, veneno, mercúrio… É uma pobreza! É um país que não se modernizou”.

A fala de Krenak torna-se ainda mais pertinente com a informação de que o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União Brasil), apresentou uma emenda ao PL, criando o Licenciamento Ambiental Especial (LAE), beneficiando e acelerando a exploração de blocos de petróleo na margem equatorial. O LAE permite com que o Governo Federal acelere o licenciamento de empreendimentos “estratégicos”, ignorando a forte propensão à degradação ambiental.

“Se o congresso arrebenta com tudo isso [meio ambiente],quem é que vai cuidar do país?”, provoca a liderança indígena.

Cadê a Amazônia que estava aqui?

A forma como o PL da Devastação foi votado na Câmara dos Deputados evidencia o contraste entre os setores produtivos e ambientalistas e pesquisadores. A decisão, além de enfraquecer a proteção de ecossistemas sensíveis, atinge em cheio territórios indígenas, unidades de conservação e comunidades tradicionais. Essa realidade já tem sido vivenciada em diversos locais, como exemplifica a ativista ambiental Ângela Mendes, filha de Chico Mendes:

O PL 2159, o PL da devastação, foi aprovado na madrugada pelos deputados, típicos de quem comete crimes. Porque, sim, a aprovação desse PL compromete nosso presente e nos toma à força o futuro da nossa existência. Enquanto aqui no Acre tem aumentado a violência, a ameaça contra as nossas lideranças, a gente vem sentindo um clima muito hostil, como no tempo em que meu pai foi assassinado. Enquanto isso, a soja vem se expandindo e junto com o gado vem avançando sobre a floresta. Então, a aprovação desse PL nos parece, nos soa como um sinal verde para a devastação da Amazônia contra seus povos”.

Angela Mendes. Foto: Reprodução/Redes Sociais

Ângela Mendes. Foto: Reprodução/Redes Sociais

As polêmicas envolvendo a proteção ambiental no Brasil não são novidade. Um exemplo claro disso é a tese do Marco Temporal, que deu início à uma brecha para que setores ruralistas a usassem como um precedente para restringir futuras demarcações.

Em 2023, o Congresso, com a maior quantidade de políticos conservadores já vista, resgatou o tema e acalorou os ânimos de todos os envolvidos.

Outro caso, que se estende por pelo menos 15 anos, é do povo Mura, no Amazonas: a empresa canadense Potássio do Brasil pretende extrair potássio na região de Autazes-AM, onde a etnia se localiza.

A acusação é de que o Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam) concedeu o licenciamento ambiental sem autorização do Congresso Nacional e sem licenciamento pelo Ibama, o que é obrigatório para projetos em terras indígenas.

Lideranças Mura denunciam coação, manipulação, falsificação de lista de presença e reuniões com representantes da empresa, sem participação efetiva das comunidades.

Povo Mura na VIII Assembleia. Foto: Rede de Comunicadores Indígenas Mura (Recim).

Povo Mura na VIII Assembleia. Foto: Rede de Comunicadores Indígenas Mura (Recim).

Episódios como esses fizeram os movimentos indígenas pressionarem o STF até que ele decidisse excluir, pelo menos, a discussão sobre mineração em TIs da pauta da Câmara de Conciliação do Marco Temporal, criada em agosto de 2024.

Segundo Ivo Makuxi, leis como a 14.701/23 (que reabriu o debate sobre o Marco Temporal de 1988 sobre demarcação de Terras Indígenas) e o PL da Devastação Ambiental perpetuam o ataque às populações tradicionais, uma vez que “flexibilizam a proteção [dessas] terras; incentivam empreendimentos dentro delas; e aumentam conflitos no campo, como a grilagem de terra e invasões de madeireiros, garimpeiros e pescadores ilegais”.

O advogado apela para que a sociedade brasileira seja mais consciente de que essa é uma causa do país inteiro.

“O nosso país tem uma legislação muito avançada de proteção ao meio ambiente. Não se pode flexibilizar essa proteção. Todos nós precisamos ter consciência da importância da preservação dos biomas e discutir projetos de desenvolvimento sustentável que respeitem o meio ambiente e as pessoas que vivem nele”, pontua.

Essa consciência, contudo, não parece fazer parte das pautas do Congresso Nacional. Um dos pontos mais críticos do PL aprovado é que ele desvincula do Licenciamento Ambiental a outorga do uso da água. Uma iniciativa totalmente incompatível com o problema de disponibilidade desse recurso que o Brasil vem enfrentando. Uma pesquisa recente realizada pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) reforça essa inconsistência:

“A gente acabou de fazer um estudo aqui muito contundente, isso serve para a Amazônia, mas também para o Cerrado. Dos 1.090 municípios do bioma Cerrado, mais da metade tem redução de água superficial por volta de 45%. Alguns municípios, ou 10% desses municípios, tem basicamente 80% de redução de água superficial. Nós estamos com um problema sério hídrico, seja ele para gerar energia, seja ele para consumo humano ou para irrigação”, ilustra o doutor em ecologia, cientista sênior e cofundador do IPAM, Paulo Moutinho.

No contexto geral, a Mata Atlântica, da qual restam aproximadamente de 12% a 24% da cobertura florestal original, perde todo tipo de proteção. A desculpa de simplificar o processo de licenciamento passa como um trator por cima da robusta legislação ambiental brasileira:

“A decisão dos nossos deputados é que agora você pode suprimir, sem consultar o Ibama, trechos inteiros de Mata Atlântica preservados, o que sobrou dela, e também anos de regeneração adotados. Eu sinceramente acredito que é uma sentença de morte para a Mata Atlântica, embora outros biomas também sejam afetados de maneira bastante significativa”, lamenta Cinthia Leone, mestra e doutora em ciência ambiental e coordenadora da diplomacia climática da ONG ClimaInfo.

Parque Nacional da Serra da Gandarela, em Minas Gerais. Foto: Frederico Pereira/Flickr.

Parque Nacional da Serra da Gandarela, um dos mais contínuos fragmentos de Mata Atlântica de Minas Gerais. Foto: Frederico Pereira/Flickr.

Previsão de mau tempo

Ao ignorar, e até mesmo potencializar, as mudanças climáticas que já estão acontecendo, o PL da Devastação ameaça a agricultura brasileira, cujo 95% “ não é irrigada, e depende da chuva produzida por floresta”, como lembra Moutinho.

O aumento do desmatamento reflete na redução das chuvas e, automaticamente, no aumento de temperatura na Amazônia e no Cerrado. Situação ainda mais agravada pela mudança climática global. De acordo com o pesquisador, está sendo dado o aval para um futuro mais seco e com menos produção agrícola:

“Portanto, aqueles que sejam da área de agricultura, de pecuária, que entendem um pouco mais do que está acontecendo, devem ver esse PL como um inimigo. Porque o que nós estamos liberando é o fim da irrigação da agricultura brasileira”, alerta.

Os moradores de diversas comunidades ribeirinhas da Amazônia, estão sofrendo com a falta de água potável e escassez de alimentos causados pela seca. Foto: Edmar Barros / Amazônia Latitude

Os moradores de diversas comunidades ribeirinhas da Amazônia, estão sofrendo com a falta de água potável e escassez de alimentos causados pela seca. Foto: Edmar Barros / Amazônia Latitude

O alcance do PL é de 90% dos licenciamentos ambientais feitos no Brasil. Quase um terço de todas as Terras Indígenas existentes, além de 80% dos Territórios Quilombolas ficam em risco.

Atualmente, na Amazônia Legal, 277 áreas protegidas precisam de consulta prévia para a execução de obras do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC). Com a Lei da Devastação, de uma hora para outra, apenas 102 delas passariam a precisar da consulta. Pelo menos 18 milhões de hectares de floresta, o tamanho do Estado do Paraná, ficaria desprotegido.

Não vetar o novo Projeto de Lei representaria a conivência do Estado brasileiro com a degradação ambiental.

Ainda pior: uma contradição com a imagem de um país que firmou compromissos internacionais de redução do uso de combustíveis fósseis e da emissão de gases de efeito estufa, como foi feito na Rio 92. Uma reputação que fica mais abalada pela aproximação da COP 30.

Para Paulo Moutinho, a medida fere o direito básico de todo brasileiro a um socioambiente equilibrado:

No mínimo, a gente tem, como cidadão, o dever de questionar profundamente o que foi aprovado no Congresso, por dois motivos básicos. Primeiro, esse PL, por todos os problemas que são propostos, Licença de Adesão, por autodeclaração de compromissos, as tais DALAC, tem uma série de problemas, mas o grande problema, que a gente tem que entender, é que num planeta em crise, em emergência climática, você passar um PL que destrói todas as precauções, as medidas de controle, as medidas de prudência ambiental, de uma vez só, é inadmissível”.

Com a reputação afetada no exterior, o Brasil tende a ter dificuldades em cumprir com os acordos firmados. A tendência do autolicenciamento é que haja o aumento das emissões de carbono, reflexo da degradação ambiental, da poluição e do desmatamento, cujo Pará, sede da Conferência das Partes, já está familiarizado.

O Estado lidera o ranking de desmatamento na Amazônia Legal com uma porcentagem de 34,68%, 102 vezes a mais do que o último colocado, o Amapá.

Dinheiro não dá em árvore

Além de comprometer a eficiência climática do país, o PL 2.159/2021, traz uma série de desafios econômicos. Cinthia Leone acredita que a economia nacional foi o principal elemento afetado pela decisão do Congresso, “uma traição aos interesses econômicos da sociedade brasileira”.

A especialista em negociações internacionais e divulgação científica alerta para o momento delicado que o Brasil vive:

A gente tá sofrendo um ataque dos Estados Unidos, do Governo Trump, ele tá fazendo uma investigação, afirmando que o governo brasileiro age de maneira desleal na hora de produzir os seus produtos e colocar no mercado internacional, e um dos argumentos que eles estão usando é o desmatamento ilegal. O Congresso brasileiro acabou de se unir ao Trump para fortalecer o argumento dele […] Essa destruição da legislação ambiental vai fazer exatamente isso, aumentar os desmatamentos e impedir que a gente consiga garantir que os nossos produtos foram feitos, foram produzidos de maneira sustentável”.

A tendência, segundo a coordenadora da diplomacia climática da ClimaInfo, é a queda do acordo Mercosul X União Europeia, tendo em vista que a União Europeia deve concordar com o ataque norteamericano.

“Porque eles sempre acusaram o Brasil de ter desmatamento na sua cadeia de valores. E agora os congressistas estão dizendo explicitamente para o mundo que nós vamos produzir tudo sem respeitar direitos humanos, legislação ambiental. Passou a boiada, aquela boiada que nós conseguimos de maneira heroica, basicamente, impedir que passasse totalmente sobre o governo Bolsonaro”, explica.

Gado em área de pasto encoberta pela fumaça de queimadas florestais contra a lei law, na margem da BR-230 (Transamazônica), próximo da cidade de Lábrea (AM), sexta-feira, 06 de setembro de 2024. Foto: Edmar Barros / Amazônia Latitude

Gado em área de pasto encoberta pela fumaça de queimadas florestais, na margem da BR-230 (Transamazônica). Foto: Edmar Barros / Amazônia Latitude

Diante de todo esse impasse, o Projeto de Lei segue para sanção presidencial. A decisão do Presidente Lula será um divisor de águas e pode refletir tanto a preocupação com o meio ambiente e os povos tradicionais brasileiros ou a conivência do Governo Federal com os efeitos degradantes da Lei.

Na análise de Cinthia, à nível internacional o Brasil mostra o seu pior lado. Com as brechas do PL, inicia-se uma “corrida perigosa”, onde prefeitos e governadores disputam para ver quem exige menos proteção ambiental. Ao mesmo tempo, investidores qualificados vão olhar o país com desconfiança, o que é perigoso nas vésperas de um evento com tamanha audiência, que é a COP 30. Talvez a alternativa que reste seja a mobilização popular:

A expectativa é de que o governo Lula vete, mas a gente sabe que, com a maioria que foi formada ali, com todos os parlamentares da frente agropecuária, mostrando que não estão dispostos a ouvir a sociedade brasileira mesmo, a gente acha que vai ser derrubado. Então, o caminho lógico, que a gente já observa, é que a gente vai ter que entrar na justiça, a gente vai ter que fazer uma litigância contra essa decisão” (Cinthia leone).

Entrevistas: Mara Régia di Perna, Marcos Colón e Nayra Wladimila
Texto e Edição:
Juliana Carvalho e Nayra Wladmila
Montagem da Página: Alice Palmeira
Direção: Marcos Colón

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